domingo, 10 de agosto de 2014

Olhe nos olhos, Isabela!


Isabela era uma baita militante. Uma pessoa reconhecida por sua franqueza polida, pela coerência entre discurso e prática. Participava organicamente de trabalhos comunitários no seu bairro e também na base do sindicato dos profissionais de educação.
Filha de pai branco e mãe negra, Isabela carregava na pele e na textura do cabelo os frutos dessa mistura. Negra ou mulata? Ela sinceramente não se importava. Alguns amigos do movimento negro certamente a reprovariam por aceitar ser chamada de mulata sem se incomodar. De fato, filhos de brancos com pretos não são como mulas não senhor, mas são tão poucos os que sabem o significado da palavra, que ela nem sempre achava que valia a pena problematizar. E por falar em origem de palavras, Isabela era professora de português e literatura da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Adorava ser professora, na verdade adorava ser professora da rede pública. Via seu trabalho como parte integrante de sua militância. Era a típica profissional certinha: nunca se atrasava, preparava com esmero todo o material que usava em classe, fazia atividades extraclasses com os alunos, buscava sempre ouvi-los e incentiva-los a participar das decisões, em suma, dedicava-se ao máximo à educação de seus estudantes. Mas seu trabalho não se reduzia aos estudantes, preocupava-se também em mobilizar os trabalhadores da escola: organizava reuniões com os membros da comunidade escolar a fim de trazer para o dia a dia da escola as discussões levantadas no sindicato e mantendo-se fiel a seus princípios sabia dialogar com parcimônia e tolerância, manifestando suas divergências, porém sem angariar grandes antipatias.
Mas fato é que as melhores relações eram aquelas com os alunos. Isabela tinha sido ela própria estudante de escola estadual então sentia-se a vontade no meio deles. Conhecia os códigos, transitava, portanto, com facilidade. Eles ouviam-na e davam crédito ao que ela dizia. Dificilmente precisava impor o respeito pela força, ele vinha pela empatia, pela amizade. Isabela acreditava demasiadamente na amizade, no querer bem como a maior força criadora. Certa vez leu uma frase postada no facebook de uma amiga, atribuída a algum autor que sabe-se lá se foi ele ou não quem escreveu, a qual dizia algo como que a amizade real só pode existir entre iguais. Ela tentava levar a sério essa frase, por mais que a relação professor-aluno seja institucionalizada na assimetria do poder. Apesar disso, ela conseguia ver seus alunos como iguais e sentia-se bem por isso.
Lendo um artigo acadêmico, Isabela ouviu falar sobre um filme que tratava da vida da juventude nos guetos negros estadunidenses. Parecia interessante por tratar de temas como violência, sexo e racismo. Decidiu baixar da internet e assistir ao filme Boyz N the Hood (Os donos da rua). Achou um bom filme para trabalhar com seus alunos adolescentes, mas o que mais lhe impressionou foi um diálogo em que o pai do protagonista dizia que os dois maiores mandamentos da verdadeira liderança eram: sempre falar olhando nos olhos das pessoas e nunca respeitar quem não lhe respeita. Mesmo sem nunca antes ter parado para pensar a respeito disso, Isabela percebeu que desde sua adolescência aqueles dois princípios eram base da maneira como ela vinha estruturando suas relações sociais.
Desde que conseguiu sua segunda matrícula no Estado, Isabela se mudou da casa de seus pais em Belford Roxo e foi morar em Campo Grande, onde aluga um pequeno, porém quase suficiente quitinete. Digo quase suficiente, porque a ausência de uma área de serviço faz com que a jovem tenha que levar suas roupas para lavar na casa de sua mãe. E assim vai levando sua vida: passa um dia na semana com família; trabalha 24 tempos de aula por semana, em três escolas; prepara minunciosamente as aulas; ensina num pré-vestibular comunitário aos sábados; participa de um grupo de estudos em educação e dedica o resto do tempo à militância ou a se divertir com os amigos, também companheiros na política.
Se sente satisfeita com a vida acelerada que leva, sente-se contente em fazer da sua existência algo agradável aos outros ao seu redor. Gosta de poder falar olhando nos olhos, se sente bem com isso. Gosta de assumir suas posições políticas publicamente e de fazer daquelas que seriam polêmicas, um ponto de vista como qualquer um, sem exacerbar paixões, mas explicando com um racionalismo de aparência neutra, capaz de acalmar os ânimos de qualquer adversário. Se orgulha dessa sua capacidade, de ser conciliadora no sentido de evitar estresses, mas ao mesmo tempo nunca abrir mão de seus posicionamentos ou princípios. Essa habilidade lhe poupa de criar inimigos, e assim Isabela se sente de bem com o mundo. Isso lhe faz feliz. Ter o respeito e amor das pessoas lhe faz feliz, parecia que nada lhe faltava.
Porém um dia Isabela descobriu que algo lhe incomodava. Havia uma pessoa que ela não conseguia conversar olhando nos olhos. Na verdade já havia percebido isto antes, mas ainda não tinha teorizado a respeito. Apenas sentiu e deixou passar. Porém, começou a perceber que o incômodo deveria ser refletido.
Estava na casa de seus pais. Filha única de um pequeno comerciante e uma professora primária aposentada, mesmo morando na Baixada conseguiam manter uma vida confortável em comparação com seus vizinhos.
Sempre que Isabela ia à casa de seus pais era uma visita corrida. Não havia tempo ocioso na vida de Isabela. Pois bem, ela chegava, deixava suas roupas para lavar e normalmente ia almoçar. Há quase 10 anos Dona Miriam trabalhava para seus pais como empregada doméstica. Era uma senhora negra, 57 anos, moradora da Favela da Guacha. Seus pais costumavam dizer que ela era parte da família. Sentava-se à mesa com eles, batia papo com sua mãe, Dona Zuleide e tinha até direito a bolo e parabéns no dia do aniversário. Mas Isabela não se enganava, Dona Miriam regulava em idade com sua mãe, mas era por Miriam somente que a chamavam, enquanto que a dona de fato da casa era Dona Zuleide. Também era sem estranhamento que, em conversas com terceiros, seus pais se referiam a esta senhora de cinquenta e muitos anos como “a menina que trabalha lá em casa”. Mas Isabela a chamava de Dona Miriam e lhe dirigia a palavra como “senhora” e não “você”. Dona Miriam parecia gostar da jovem professora, ao menos era o que demonstrava em seus sorrisos e olhar interessado nas histórias que Isabela costumava contar na mesa durante o almoço.
Isabela também se interessava e ouvia com atenção as histórias que Dona Miriam tinha para contar. Mas seus olhos não conseguiam manter como foco as pupilas de sua interlocutora. Eles insistiam em desviar sua atenção.
No início, Isabela demorou um pouco a compreender aquilo, mas um belo dia, logo após o almoço lhe veio um insight ao recolher suas roupas lavadas. E a desigualdade lhe feriu o ego. Tentou passar mertiolate nele lembrando que é do cotidiano de suas visitas oferecer ajuda na cozinha, ajudar a pôr a mesa e a lavar as louças. Mas isso pouco mudou sua convicção na injustiça do trabalho doméstico e foi para a cama pensando que só será capaz de olhar Dona Miriam nos olhos no dia em que ela também lave a roupa e cozinhe para aquela estimada senhora.

Mariana Penna, 2014.

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