Isabela era uma baita militante. Uma
pessoa reconhecida por sua franqueza polida, pela coerência entre discurso e
prática. Participava organicamente de trabalhos comunitários no seu bairro e
também na base do sindicato dos profissionais de educação.
Filha de pai branco e mãe negra,
Isabela carregava na pele e na textura do cabelo os frutos dessa mistura. Negra
ou mulata? Ela sinceramente não se importava. Alguns amigos do movimento negro
certamente a reprovariam por aceitar ser chamada de mulata sem se incomodar. De
fato, filhos de brancos com pretos não são como mulas não senhor, mas são tão
poucos os que sabem o significado da palavra, que ela nem sempre achava que
valia a pena problematizar. E por falar em origem de palavras, Isabela era
professora de português e literatura da rede estadual de ensino do Rio de
Janeiro. Adorava ser professora, na verdade adorava ser professora da rede
pública. Via seu trabalho como parte integrante de sua militância. Era a típica
profissional certinha: nunca se atrasava, preparava com esmero todo o material
que usava em classe, fazia atividades extraclasses com os alunos, buscava
sempre ouvi-los e incentiva-los a participar das decisões, em suma, dedicava-se
ao máximo à educação de seus estudantes. Mas seu trabalho não se reduzia aos
estudantes, preocupava-se também em mobilizar os trabalhadores da escola: organizava
reuniões com os membros da comunidade escolar a fim de trazer para o dia a dia
da escola as discussões levantadas no sindicato e mantendo-se fiel a seus
princípios sabia dialogar com parcimônia e tolerância, manifestando suas
divergências, porém sem angariar grandes antipatias.
Mas fato é que as melhores relações
eram aquelas com os alunos. Isabela tinha sido ela própria estudante de escola
estadual então sentia-se a vontade no meio deles. Conhecia os códigos,
transitava, portanto, com facilidade. Eles ouviam-na e davam crédito ao que ela
dizia. Dificilmente precisava impor o respeito pela força, ele vinha pela
empatia, pela amizade. Isabela acreditava demasiadamente na amizade, no querer
bem como a maior força criadora. Certa vez leu uma frase postada no facebook de
uma amiga, atribuída a algum autor que sabe-se lá se foi ele ou não quem
escreveu, a qual dizia algo como que a amizade real só pode existir entre
iguais. Ela tentava levar a sério essa frase, por mais que a relação
professor-aluno seja institucionalizada na assimetria do poder. Apesar disso,
ela conseguia ver seus alunos como iguais e sentia-se bem por isso.
Lendo um artigo acadêmico, Isabela
ouviu falar sobre um filme que tratava da vida da juventude nos guetos negros
estadunidenses. Parecia interessante por tratar de temas como violência, sexo e
racismo. Decidiu baixar da internet e assistir ao filme Boyz N the Hood (Os
donos da rua). Achou um bom filme para trabalhar com seus alunos adolescentes,
mas o que mais lhe impressionou foi um diálogo em que o pai do protagonista
dizia que os dois maiores mandamentos da verdadeira liderança eram: sempre
falar olhando nos olhos das pessoas e nunca respeitar quem não lhe respeita. Mesmo
sem nunca antes ter parado para pensar a respeito disso, Isabela percebeu que desde
sua adolescência aqueles dois princípios eram base da maneira como ela vinha
estruturando suas relações sociais.
Desde que conseguiu sua segunda
matrícula no Estado, Isabela se mudou da casa de seus pais em Belford Roxo e
foi morar em Campo Grande, onde aluga um pequeno, porém quase suficiente
quitinete. Digo quase suficiente, porque a ausência de uma área de serviço faz
com que a jovem tenha que levar suas roupas para lavar na casa de sua mãe. E
assim vai levando sua vida: passa um dia na semana com família; trabalha 24
tempos de aula por semana, em três escolas; prepara minunciosamente as aulas; ensina
num pré-vestibular comunitário aos sábados; participa de um grupo de estudos em
educação e dedica o resto do tempo à militância ou a se divertir com os amigos,
também companheiros na política.
Se sente satisfeita com a vida
acelerada que leva, sente-se contente em fazer da sua existência algo agradável
aos outros ao seu redor. Gosta de poder falar olhando nos olhos, se sente bem com
isso. Gosta de assumir suas posições políticas publicamente e de fazer daquelas
que seriam polêmicas, um ponto de vista como qualquer um, sem exacerbar
paixões, mas explicando com um racionalismo de aparência neutra, capaz de
acalmar os ânimos de qualquer adversário. Se orgulha dessa sua capacidade, de
ser conciliadora no sentido de evitar estresses, mas ao mesmo tempo nunca abrir
mão de seus posicionamentos ou princípios. Essa habilidade lhe poupa de criar
inimigos, e assim Isabela se sente de bem com o mundo. Isso lhe faz feliz. Ter
o respeito e amor das pessoas lhe faz feliz, parecia que nada lhe faltava.
Porém um dia Isabela descobriu que
algo lhe incomodava. Havia uma pessoa que ela não conseguia conversar olhando
nos olhos. Na verdade já havia percebido isto antes, mas ainda não tinha
teorizado a respeito. Apenas sentiu e deixou passar. Porém, começou a perceber
que o incômodo deveria ser refletido.
Estava na casa de seus pais. Filha
única de um pequeno comerciante e uma professora primária aposentada, mesmo
morando na Baixada conseguiam manter uma vida confortável em comparação com
seus vizinhos.
Sempre que Isabela ia à casa de seus
pais era uma visita corrida. Não havia tempo ocioso na vida de Isabela. Pois
bem, ela chegava, deixava suas roupas para lavar e normalmente ia almoçar. Há quase
10 anos Dona Miriam trabalhava para seus pais como empregada doméstica. Era uma
senhora negra, 57 anos, moradora da Favela da Guacha. Seus pais costumavam
dizer que ela era parte da família. Sentava-se à mesa com eles, batia papo com
sua mãe, Dona Zuleide e tinha até direito a bolo e parabéns no dia do
aniversário. Mas Isabela não se enganava, Dona Miriam regulava em idade com sua
mãe, mas era por Miriam somente que a chamavam, enquanto que a dona de fato da
casa era Dona Zuleide. Também era sem estranhamento que, em conversas com
terceiros, seus pais se referiam a esta senhora de cinquenta e muitos anos como
“a menina que trabalha lá em casa”. Mas Isabela a chamava de Dona Miriam e lhe
dirigia a palavra como “senhora” e não “você”. Dona Miriam parecia gostar da
jovem professora, ao menos era o que demonstrava em seus sorrisos e olhar
interessado nas histórias que Isabela costumava contar na mesa durante o
almoço.
Isabela também se interessava e ouvia
com atenção as histórias que Dona Miriam tinha para contar. Mas seus olhos não
conseguiam manter como foco as pupilas de sua interlocutora. Eles insistiam em
desviar sua atenção.
No início, Isabela demorou um pouco a
compreender aquilo, mas um belo dia, logo após o almoço lhe veio um insight ao
recolher suas roupas lavadas. E a desigualdade lhe feriu o ego. Tentou passar
mertiolate nele lembrando que é do cotidiano de suas visitas oferecer ajuda na
cozinha, ajudar a pôr a mesa e a lavar as louças. Mas isso pouco mudou sua
convicção na injustiça do trabalho doméstico e foi para a cama pensando que só
será capaz de olhar Dona Miriam nos olhos no dia em que ela também lave a roupa
e cozinhe para aquela estimada senhora.
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