domingo, 15 de setembro de 2019

Branquitude




Luara era uma menina de 10 anos de idade. Uma linda criança de pele negra, cabelos negros e absolutamente lisos, olhos castanhos escuros, quase pretos. Uma garotinha leve, de atitude descomprometida. Parecia flutuar pela existência sem medo de sanções, sem se preocupar se cumpria ou violava regras de convivência. Fomos amigas por um tempo. Certa vez Luara me contou sobre o fim do mundo, disse-me que ele se aproximava e que no ano 2000 tudo iria se acabar. Falava sorrindo, sem preocupação, como se o advento milenarista fosse algo de tão pouca dramaticidade que pudesse me contar como mera curiosidade. Mas eu era pesada, não compartilhava em nada a postura despreocupada de outras crianças. Primeiro, duvidei. Algo tão sério não poderia ter passado alheio ao meu conhecimento. Mas ela afirmou ser real, pois estaria escrito na Bíblia, no livro do Apocalipse. Se estava na Bíblia, para mim era inquestionável. Nada podia ser mais verdadeiro que a palavra do deus, aquele a quem eu tanto temia. Procurei minha mãe para averiguar a informação. Mamãe tentou me acalmar, relativizou, falou sobre o ano 1000 e a continuidade do mundo após aquela data. Mas não adiantou. Eu precisava chegar às minhas próprias conclusões. Li de cabo a rabo o Apocalipse, reli. Aquela linguagem cifrada me tirava o sono e suas passagens escatológicas me assombravam como um filme de terror. Mas Luara não se importava com isso, sequer sofria pela ideia de morrer aos 15 anos. Ela tinha outras preocupações. Certo dia, pela manhã, nos encontramos para brincar num terreno baldio de frente pra minha casa. Ela estava especialmente animada. Pediu para que eu olhasse sua íris com atenção. Perguntou, com euforia, se eu estava conseguindo ver uma manchinha verde próxima à pupila. Observei uma coloração um pouco distinta e respondi afirmativamente. Saltitando de alegria, a menina me explicou o motivo. Na noite anterior, havia rezado muito e pedido a Deus que tornasse seus olhos verdes. Estupefata, olhei para ela assustada, identificando ali uma tremenda blasfêmia, um sério pecado. Não se podia pedir a deus por uma coisa tão fútil, não cabia a nós humanos questionar os desígnios divinos quanto à nossa natureza corporal. Eu também gostaria de ser loura de olhos claros como as paquitas da Xuxa, ou como as minhas Barbies. Mas não se poderia perturbar a deus com algo de tão pouca importância. Não era a saúde de ninguém que estava em jogo, não era uma questão de passar fome, a paz mundial não estava ameaçada por aqueles olhos escuros. Mas, como eu disse, Luara tinha outras preocupações.

Mariana Penna, 2019.