Essa
história se passa numa época em que o mundo era bem diferente do que vivemos, mas
os seres humanos nem tanto. Àquela época vivia-se em pequenos grupos e não
havia parada certa para essas pessoas congregadas. A natureza a eles externa
ditava ritmos e rumos. Seus corpos eram como os nossos, talvez um pouco mais
baixos, mas igualmente carentes de pelos e de proteção contra as intempéries.
Seus cérebros, grandes o suficiente para elaborar linguagens, sentimentos
complexos, afetos e lógicas. Por milênios caminhavam assim, agrupados,
interagindo entre si e com a natureza onipotente que a todo momento deixava
claro quem mandava em quem. Contra esta força, por vezes imprevisível, era
melhor não opor resistência, e sim conceder reverência. Os humanos sabiam se
curvar aos seus caprichos e venerar suas manifestações as mais variadas. O sol,
os rios, as plantas, os animais, as rochas, todos eram sagrados.
Foi
neste contexto que viveram os personagens desta história. Caçavam e coletavam
as frutas e raízes que seus antepassados lhes ensinaram a apreciar, evitando as
desconhecidas, a menos que a penúria os empurrasse a se aventurar como fizeram
os pioneiros. Tudo era muito diferente de hoje, mas seus medos eram nossos
medos. À instabilidade da vida moderna – de insegurança no mundo do trabalho,
nos relacionamentos fluidos e fugazes – correspondiam as incertezas de uma
ordem natural nem sempre previsível.
A
insegurança era ampliada ao desbravar regiões completamente desconhecidas. A
escassez levou esse bando a se deslocar. A caça rareava, os animais eram poucos
e muito ariscos. As frutas e raízes eram insuficientes para alimentar a todos. Eram
dezoito os que compunham o grupo, sendo cinco crianças pequenas, incapazes de
contribuir efetivamente na busca por alimentos.
O
fogo ajudava a se protegerem nas noites de frio quando estavam descobertos. Era
um trabalho árduo produzir fogo, sendo uma tarefa comumente compartilhada e seu
sucesso celebrado. Esforçavam-se ao máximo para manter a brasa acessa dias a
fio, a fim de evitar os enormes esforços para produzir nova chama.
Todas
as tarefas compartilhadas tornavam-se mais difíceis em contexto de deslocamento,
mas era preciso envidar os mais heroicos esforços neste período de dificuldade.
Os territórios eram ainda desconhecidos, os riscos estavam por todos os lados.
Um grupo predominantemente de homens saiu para realizar uma caçada. Em meio a
eles encontra-se nosso protagonista central. Preocupavam-se em deixar marcas no
caminho, riscando as árvores e engendravam esforços para agir coletivamente na
hora da caçada.
Mas
nem sempre a preocupação e cautela falaram mais alto. A ansiedade por alcançar
o objetivo levou nosso protagonista a se distanciar do grupo enquanto
mergulhava na perseguição solitária de uma paca bastante corpulenta. No
entanto, por rechonchuda que fosse, a bichinha não perdia em agilidade. O homem
direcionou todas as suas energias para aquela caçada, como se dela tão somente
dependesse a sua vida. Correu por entre galhos, saltou pedras, sem medo de
ferir-se, e direcionando todas as suas forças, mergulhou a lança no meio do
corpo do animal, que após certa agonia, silenciou-se. Nosso personagem sentia
correr no sangue a sensação da glória. Respirava acelerado e sorria com imensa
satisfação, orgulhoso do feito. Antecipava em sua imaginação o reencontro com os
demais, exibindo generosamente a enorme paca que acabava de conquistar.
Imaginar os sorrisos e agradecimentos nos olhares o deixou em êxtase. Enquanto
recuperava o fôlego, essas cenas idílicas embalavam sua recuperação.
Porém,
conforme a endorfina baixou em seu sangue, foi a vez da adrenalina e da
noradrenalina voltarem com toda força: assustou-se ao descobrir-se sozinho. A
sensação de desespero disparou-lhe o coração. Como faria para reencontrar o
grupo? Seria possível retraçar o caminho percorrido? Será que seus companheiros
de caçada o encontrariam sem que para isso precisasse se esforçar? Vários eram
os pensamentos que assaltavam sua cabeça inquieta, mas não conseguia decidir-se
quanto ao que fazer tamanha era a ansiedade que por agitadora que fosse, na
prática paralisava pelo excesso de estímulos.
Era
preciso decidir, respirou, olhou sua caça, olhou o entorno. Decidiu-se. Lançou o
corpo da paca em suas costas, segurando-a sobre o ombro esquerdo, agarrando-a
junto com a lança, e pôs-se a caminhar tentando retraçar a rota percorrida. Se
colocar em movimento o havia tirado da paralisia. O sentimento de otimismo e esperança
acalmaram sua angústia. Era ainda o início do dia, o sol ainda brilharia por um
longo tempo, intervalo este que esperava ser suficiente para corrigir o
terrível erro.
Andava
e andava tentando observar marcas no solo, galhos quebrados, ou qualquer outro
indício de sua passagem prévia por ali. Mas apesar das pistas encontradas, não avançava
o suficiente para reencontrar seus pares. O sol se movimentava nos céus,
indicando que seu tempo minguava. Já havia passado pelo alto de sua cabeça e começava
a descer para apagar-se no horizonte. Esperança
e desespero duelavam, disputando o controle de sua mente. Pensamentos otimistas
e pessimistas de intercalavam e os intervalos entre uns e outros ficavam cada
vez mais breves.
A
fome e o cansaço pareciam alimentar a angústia. Precisava parar para descansar,
mas haveria tempo para isso? Se esforçava mais um pouco. O sangue da paca escorria
em seu corpo. Resolveu ceder. Com a ponta da pedra de sua lança alargou o corte
que vitimou o animal e pôs-se a sugar o sangue e a mordiscar um pouco da carne.
Não muito, queria compensar seu desencontro ofertando aos seus companheiros uma
compensação pelo aborrecimento. Pensava nas preocupações quanto ao seu
paradeiro. Será que sentiriam sua falta? Certamente não tanto quanto ele sentia
dos demais. A solidão ia tornando-se pouco a pouco mais insustentável conforme
o dia findava.
Após
a pausa, demorou um pouco a se colocar em ação mais uma vez. Era o desalento se
aproximando dele. Dizia ser inútil se esforçar. Caminhava lado a lado com o
pessimismo, mas não era de todo avesso à esperança. Este último sentimento tem
formas curiosas de agir já que pode se manifestar também como ilusão. No caso
do nosso protagonista, era a ilusão de que forças redentoras, que dispensavam
seus próprios esforços, viriam ao seu socorro, tirando-o do desespero e
levando-o de volta ao bando. Em alguns momentos ele desejava ardentemente e
invocava espíritos sobrenaturais para agirem em seu favor. Por alguns instantes,
convencia-se de que o desejo manifesto em fé concretizaria uma realidade mais favorável.
Mas ao confrontar-se com a verdade de que nada mudava, vinha o desalento e
pensamentos de que não haveria alternativa pois tivera sido amaldiçoado e
aquela seria a sua punição.
Porém,
após o esvaziamento da esperança de um resgate sobrenatural, e, principalmente
após o desalento de sentir-se amaldiçoado, misteriosamente surgia uma nova
energia. Esta energia, parecia emergir da desilusão como um último suspiro de
sobrevivência. Ao se defrontar com a realidade absolutamente adversa, percebeu-se
essencialmente só. Reconheceu que, no fundo, naquele momento não poderia contar
com ninguém e com nada além de suas próprias forças. Voltou a caminhar, com os
pés doendo e os olhos ainda repletos de lágrimas, mas era preciso seguir em
frente.
Mas
não tardou até o anoitecer e com ele a ansiedade alcançava seu ápice. O
anoitecer significava o risco máximo à sua existência, estaria vulnerável como
nunca. Não haveria pior momento para estar só, pois é justamente durante a
noite que manifestamos nossa natureza mais gregária. Conforme escurece, aumentam
os perigos, a visão torna-se insuficiente, os seres humanos frágeis. É o
momento do medo do que não se pode ver, do desconhecido e ameaçador. O bando já
devia estar plenamente reagrupado naquele momento, unindo-se todos contra as
ameaças externas que a noite traz. Pois além dos animais violentos, vem também
o frio. O frio aproxima fisicamente as pessoas, compartilhando seus calores,
defendem-se de mais um inimigo noturno.
Talvez
pelas razões da sobrevivência, ainda hoje a noite é o pior momento para se
estar só. As crianças se amedrontam com a escuridão e procuram o carinho de
seus cuidadores. Mas o entardecer também é romântico. Ao pôr do sol se
encontram amantes, amigos. Após um longo dia de trabalho, as pessoas anseiam
pelo conforto de seus lares e pelo afeto daqueles com quem coabitam. Por outro
lado, o entardecer amplia a dor dos solitários. Os términos de relacionamentos
doem mais quando chega a noite. A solidão fere mais intensamente. A pessoa
independente, desgarrada, que vive por conta própria, não tem a quem recorrer frente
às angústias da noite. Não tem em seus pares a possibilidade de um aconchego
noturno. Nossos arranjos modernos são respostas ao primordial instinto de
autopreservação e de continuidade da espécie. Viver longe deles tem seus
custos.
E
para nosso protagonista, que viveu nesses tempos primordiais, a noite era
efetivamente uma ameaça à sua existência. Seu medo psíquico expressava efetivamente
uma ameaça física. Sua integridade estava por um triz. Liberou seu medo que
chegou ao ápice. Gritou de pavor e raiva, depois disso, chorou mais uma vez. A
desesperança tomou-lhe por inteiro: como poderia sobreviver sozinho à noite que
se avizinhava? Começou a se morder nos braços, como se inconscientemente
quisesse acelerar sua destruição para amenizar o sofrimento. Mas o ato de
autoflagelação lhe fez parar e refletir. Mais uma vez encontrava seu limite,
seu fundo do poço, antes de soerguer-se. Ainda havia um resto de luz solar,
precisava de um lugar para pousar, não podia caminhar durante a noite. E acima
de tudo, precisava de calor. Recolheu os gravetos e folhagens o mais secos possível
que encontrou no entorno. Não foi nada fácil encontrar, a umidade vicejava
naquela floresta. O local escolhido também precisava ser mais seco, por isso
buscou um leve aclive.
Desistiu
de preservar intacta a paca. Foi-se o orgulho, era preciso pôr-se em primeiro
lugar caso desejasse sobreviver. Rasgou-a com vontade, desfigurando
completamente o belo animal. Mordeu e mastigou suas partes mais maciais. Com
fome não suportaria os rigores da noite. Aliviado o desconforto de um estômago
vazio, se colocou ao trabalho. Juntou folhas, gravetos e galhos. Montou o
esquema para iniciar a fricção em busca de uma chama. Sabia que era uma tarefa árdua,
difícil para um só executar, mas não se abalou. Com a pedra descascou um
pequeno círculo no centro do galho maior para servir de base e com um graveto
entre as mãos começou a roçar freneticamente nesse corte circular em busca das
tão desejadas faíscas. Passou um longo tempo repetindo este movimento
vigorosamente, mas suas mãos e braços estavam cada vez mais cansados para
suportar. Chegou ao limite de seus esforços quando foi tomado por mais uma onda
de desespero. Os pensamentos pessimistas se impuseram como reis absolutos: a
madeira deveria estar úmida demais, seus esforços nunca bastariam, era seu fim.
O choro mais uma vez abafou suas energias, seu espírito parecia afundar num
nível abaixo do corpo sentado ao chão. Suas mãos tremiam em parte pelos
esforços repetitivos, em parte pelo nervoso. As lágrimas vertiam em quantidade
e o desalento aprofundava. O frio piorava e lhe encolhia todo o corpo. Foi
então que se entregou ao pensamento como alento frente ao que parecia uma
tragédia inevitável. Acionou a memória e lembrou das noites de carinho, de aconchego,
dos afagos tão reconfortantes que embalavam seu sono. Era muito agradável, mas
como doía saber que não era isso que a vida lhe reservara praquele momento. E
ao invés de interromper a imaginação, mergulhou ainda mais no devaneio: sonhava
acordado que seu bando o reencontrava. Recebia inúmeros abraços e comidas. Uma
fogueira aquecia e estimulava a dança. Era o paraíso. E por um tempo ajudou. O
reconforto do sonho, da fuga de uma realidade tão inóspita, preservou-o do
desespero absoluto. Mas como toda ilusão, cedo ou tarde é chegado seu fim. Não
há amigo imaginário que supra completamente o desejo de socialização de uma
criança solitária, e assim como um dia ele vai embora, também os devaneios de
adultos têm seus limites. O frio lhe doeu o corpo e deixou claro que enfrentá-lo
era um imperativo. A lua já havia se movimentado tanto, sabe-se lá quantas
horas dos nossos dias teriam passado desde o anoitecer do solitário
protagonista. E ele se levantou, com menos energia e ânimo do que quanto pôs-se
primeiramente a trabalhar, mas sim com a frieza de quem não vê outra
alternativa, por mais que não tenha qualquer garantia de resultado. E quando o
braço lhe doeu ao extremo, parou, mas não chorou mais. Passado um tempo para
recuperar o movimento, continuou e continuou. Sem quase pensar, agindo no
automático. Até que... uma faísca! Seus olhos cansados até duvidaram, mas
empenhou-se com mais ânimo e efetivamente conseguiu identificar o início de uma
brasa. Daquela noite sem fim brotou uma luz. Aproximou a brasa das folhas secas
e soprou, soprou. O fogo enfim vingou! Do oxigênio que ventava de seus pulmões
soprou energia suficiente para alimentar as primeiras chamas. Aos poucos tinha
uma fogueira. Podia se aquecer e até assar alguns pedaços da paca já meio estraçalhada.
No céu, a noite já não era absoluta, o horizonte parecia indicar a chegada dos
primeiros raios do dia. Mas o alívio de conseguir a chama aqueceu seu corpo e
espírito. A ansiedade esvaiu-se o suficiente para que pudesse adormecer. No dia
seguinte, ele já sabia, faria de tudo para preservar a brasa e seguir sua busca
pelo bando. O desespero viria, o desalento viria, mas não podia desistir, ainda
que só contasse com suas forças, abandonado que se sentia pelos espíritos
ancestrais e pelas forças da natureza. Não havia qualquer certeza.
Mariana Penna, 2019.