domingo, 21 de abril de 2019

A solidão e a noite



Essa história se passa numa época em que o mundo era bem diferente do que vivemos, mas os seres humanos nem tanto. Àquela época vivia-se em pequenos grupos e não havia parada certa para essas pessoas congregadas. A natureza a eles externa ditava ritmos e rumos. Seus corpos eram como os nossos, talvez um pouco mais baixos, mas igualmente carentes de pelos e de proteção contra as intempéries. Seus cérebros, grandes o suficiente para elaborar linguagens, sentimentos complexos, afetos e lógicas. Por milênios caminhavam assim, agrupados, interagindo entre si e com a natureza onipotente que a todo momento deixava claro quem mandava em quem. Contra esta força, por vezes imprevisível, era melhor não opor resistência, e sim conceder reverência. Os humanos sabiam se curvar aos seus caprichos e venerar suas manifestações as mais variadas. O sol, os rios, as plantas, os animais, as rochas, todos eram sagrados. 
Foi neste contexto que viveram os personagens desta história. Caçavam e coletavam as frutas e raízes que seus antepassados lhes ensinaram a apreciar, evitando as desconhecidas, a menos que a penúria os empurrasse a se aventurar como fizeram os pioneiros. Tudo era muito diferente de hoje, mas seus medos eram nossos medos. À instabilidade da vida moderna – de insegurança no mundo do trabalho, nos relacionamentos fluidos e fugazes – correspondiam as incertezas de uma ordem natural nem sempre previsível.
A insegurança era ampliada ao desbravar regiões completamente desconhecidas. A escassez levou esse bando a se deslocar. A caça rareava, os animais eram poucos e muito ariscos. As frutas e raízes eram insuficientes para alimentar a todos. Eram dezoito os que compunham o grupo, sendo cinco crianças pequenas, incapazes de contribuir efetivamente na busca por alimentos.
O fogo ajudava a se protegerem nas noites de frio quando estavam descobertos. Era um trabalho árduo produzir fogo, sendo uma tarefa comumente compartilhada e seu sucesso celebrado. Esforçavam-se ao máximo para manter a brasa acessa dias a fio, a fim de evitar os enormes esforços para produzir nova chama.
Todas as tarefas compartilhadas tornavam-se mais difíceis em contexto de deslocamento, mas era preciso envidar os mais heroicos esforços neste período de dificuldade. Os territórios eram ainda desconhecidos, os riscos estavam por todos os lados. Um grupo predominantemente de homens saiu para realizar uma caçada. Em meio a eles encontra-se nosso protagonista central. Preocupavam-se em deixar marcas no caminho, riscando as árvores e engendravam esforços para agir coletivamente na hora da caçada.
Mas nem sempre a preocupação e cautela falaram mais alto. A ansiedade por alcançar o objetivo levou nosso protagonista a se distanciar do grupo enquanto mergulhava na perseguição solitária de uma paca bastante corpulenta. No entanto, por rechonchuda que fosse, a bichinha não perdia em agilidade. O homem direcionou todas as suas energias para aquela caçada, como se dela tão somente dependesse a sua vida. Correu por entre galhos, saltou pedras, sem medo de ferir-se, e direcionando todas as suas forças, mergulhou a lança no meio do corpo do animal, que após certa agonia, silenciou-se. Nosso personagem sentia correr no sangue a sensação da glória. Respirava acelerado e sorria com imensa satisfação, orgulhoso do feito. Antecipava em sua imaginação o reencontro com os demais, exibindo generosamente a enorme paca que acabava de conquistar. Imaginar os sorrisos e agradecimentos nos olhares o deixou em êxtase. Enquanto recuperava o fôlego, essas cenas idílicas embalavam sua recuperação.
Porém, conforme a endorfina baixou em seu sangue, foi a vez da adrenalina e da noradrenalina voltarem com toda força: assustou-se ao descobrir-se sozinho. A sensação de desespero disparou-lhe o coração. Como faria para reencontrar o grupo? Seria possível retraçar o caminho percorrido? Será que seus companheiros de caçada o encontrariam sem que para isso precisasse se esforçar? Vários eram os pensamentos que assaltavam sua cabeça inquieta, mas não conseguia decidir-se quanto ao que fazer tamanha era a ansiedade que por agitadora que fosse, na prática paralisava pelo excesso de estímulos.
Era preciso decidir, respirou, olhou sua caça, olhou o entorno. Decidiu-se. Lançou o corpo da paca em suas costas, segurando-a sobre o ombro esquerdo, agarrando-a junto com a lança, e pôs-se a caminhar tentando retraçar a rota percorrida. Se colocar em movimento o havia tirado da paralisia. O sentimento de otimismo e esperança acalmaram sua angústia. Era ainda o início do dia, o sol ainda brilharia por um longo tempo, intervalo este que esperava ser suficiente para corrigir o terrível erro.
Andava e andava tentando observar marcas no solo, galhos quebrados, ou qualquer outro indício de sua passagem prévia por ali. Mas apesar das pistas encontradas, não avançava o suficiente para reencontrar seus pares. O sol se movimentava nos céus, indicando que seu tempo minguava. Já havia passado pelo alto de sua cabeça e começava a descer para apagar-se no horizonte.  Esperança e desespero duelavam, disputando o controle de sua mente. Pensamentos otimistas e pessimistas de intercalavam e os intervalos entre uns e outros ficavam cada vez mais breves.
A fome e o cansaço pareciam alimentar a angústia. Precisava parar para descansar, mas haveria tempo para isso? Se esforçava mais um pouco. O sangue da paca escorria em seu corpo. Resolveu ceder. Com a ponta da pedra de sua lança alargou o corte que vitimou o animal e pôs-se a sugar o sangue e a mordiscar um pouco da carne. Não muito, queria compensar seu desencontro ofertando aos seus companheiros uma compensação pelo aborrecimento. Pensava nas preocupações quanto ao seu paradeiro. Será que sentiriam sua falta? Certamente não tanto quanto ele sentia dos demais. A solidão ia tornando-se pouco a pouco mais insustentável conforme o dia findava.
Após a pausa, demorou um pouco a se colocar em ação mais uma vez. Era o desalento se aproximando dele. Dizia ser inútil se esforçar. Caminhava lado a lado com o pessimismo, mas não era de todo avesso à esperança. Este último sentimento tem formas curiosas de agir já que pode se manifestar também como ilusão. No caso do nosso protagonista, era a ilusão de que forças redentoras, que dispensavam seus próprios esforços, viriam ao seu socorro, tirando-o do desespero e levando-o de volta ao bando. Em alguns momentos ele desejava ardentemente e invocava espíritos sobrenaturais para agirem em seu favor. Por alguns instantes, convencia-se de que o desejo manifesto em fé concretizaria uma realidade mais favorável. Mas ao confrontar-se com a verdade de que nada mudava, vinha o desalento e pensamentos de que não haveria alternativa pois tivera sido amaldiçoado e aquela seria a sua punição.
Porém, após o esvaziamento da esperança de um resgate sobrenatural, e, principalmente após o desalento de sentir-se amaldiçoado, misteriosamente surgia uma nova energia. Esta energia, parecia emergir da desilusão como um último suspiro de sobrevivência. Ao se defrontar com a realidade absolutamente adversa, percebeu-se essencialmente só. Reconheceu que, no fundo, naquele momento não poderia contar com ninguém e com nada além de suas próprias forças. Voltou a caminhar, com os pés doendo e os olhos ainda repletos de lágrimas, mas era preciso seguir em frente.
Mas não tardou até o anoitecer e com ele a ansiedade alcançava seu ápice. O anoitecer significava o risco máximo à sua existência, estaria vulnerável como nunca. Não haveria pior momento para estar só, pois é justamente durante a noite que manifestamos nossa natureza mais gregária. Conforme escurece, aumentam os perigos, a visão torna-se insuficiente, os seres humanos frágeis. É o momento do medo do que não se pode ver, do desconhecido e ameaçador. O bando já devia estar plenamente reagrupado naquele momento, unindo-se todos contra as ameaças externas que a noite traz. Pois além dos animais violentos, vem também o frio. O frio aproxima fisicamente as pessoas, compartilhando seus calores, defendem-se de mais um inimigo noturno.
Talvez pelas razões da sobrevivência, ainda hoje a noite é o pior momento para se estar só. As crianças se amedrontam com a escuridão e procuram o carinho de seus cuidadores. Mas o entardecer também é romântico. Ao pôr do sol se encontram amantes, amigos. Após um longo dia de trabalho, as pessoas anseiam pelo conforto de seus lares e pelo afeto daqueles com quem coabitam. Por outro lado, o entardecer amplia a dor dos solitários. Os términos de relacionamentos doem mais quando chega a noite. A solidão fere mais intensamente. A pessoa independente, desgarrada, que vive por conta própria, não tem a quem recorrer frente às angústias da noite. Não tem em seus pares a possibilidade de um aconchego noturno. Nossos arranjos modernos são respostas ao primordial instinto de autopreservação e de continuidade da espécie. Viver longe deles tem seus custos.
E para nosso protagonista, que viveu nesses tempos primordiais, a noite era efetivamente uma ameaça à sua existência. Seu medo psíquico expressava efetivamente uma ameaça física. Sua integridade estava por um triz. Liberou seu medo que chegou ao ápice. Gritou de pavor e raiva, depois disso, chorou mais uma vez. A desesperança tomou-lhe por inteiro: como poderia sobreviver sozinho à noite que se avizinhava? Começou a se morder nos braços, como se inconscientemente quisesse acelerar sua destruição para amenizar o sofrimento. Mas o ato de autoflagelação lhe fez parar e refletir. Mais uma vez encontrava seu limite, seu fundo do poço, antes de soerguer-se. Ainda havia um resto de luz solar, precisava de um lugar para pousar, não podia caminhar durante a noite. E acima de tudo, precisava de calor. Recolheu os gravetos e folhagens o mais secos possível que encontrou no entorno. Não foi nada fácil encontrar, a umidade vicejava naquela floresta. O local escolhido também precisava ser mais seco, por isso buscou um leve aclive.
Desistiu de preservar intacta a paca. Foi-se o orgulho, era preciso pôr-se em primeiro lugar caso desejasse sobreviver. Rasgou-a com vontade, desfigurando completamente o belo animal. Mordeu e mastigou suas partes mais maciais. Com fome não suportaria os rigores da noite. Aliviado o desconforto de um estômago vazio, se colocou ao trabalho. Juntou folhas, gravetos e galhos. Montou o esquema para iniciar a fricção em busca de uma chama. Sabia que era uma tarefa árdua, difícil para um só executar, mas não se abalou. Com a pedra descascou um pequeno círculo no centro do galho maior para servir de base e com um graveto entre as mãos começou a roçar freneticamente nesse corte circular em busca das tão desejadas faíscas. Passou um longo tempo repetindo este movimento vigorosamente, mas suas mãos e braços estavam cada vez mais cansados para suportar. Chegou ao limite de seus esforços quando foi tomado por mais uma onda de desespero. Os pensamentos pessimistas se impuseram como reis absolutos: a madeira deveria estar úmida demais, seus esforços nunca bastariam, era seu fim. O choro mais uma vez abafou suas energias, seu espírito parecia afundar num nível abaixo do corpo sentado ao chão. Suas mãos tremiam em parte pelos esforços repetitivos, em parte pelo nervoso. As lágrimas vertiam em quantidade e o desalento aprofundava. O frio piorava e lhe encolhia todo o corpo. Foi então que se entregou ao pensamento como alento frente ao que parecia uma tragédia inevitável. Acionou a memória e lembrou das noites de carinho, de aconchego, dos afagos tão reconfortantes que embalavam seu sono. Era muito agradável, mas como doía saber que não era isso que a vida lhe reservara praquele momento. E ao invés de interromper a imaginação, mergulhou ainda mais no devaneio: sonhava acordado que seu bando o reencontrava. Recebia inúmeros abraços e comidas. Uma fogueira aquecia e estimulava a dança. Era o paraíso. E por um tempo ajudou. O reconforto do sonho, da fuga de uma realidade tão inóspita, preservou-o do desespero absoluto. Mas como toda ilusão, cedo ou tarde é chegado seu fim. Não há amigo imaginário que supra completamente o desejo de socialização de uma criança solitária, e assim como um dia ele vai embora, também os devaneios de adultos têm seus limites. O frio lhe doeu o corpo e deixou claro que enfrentá-lo era um imperativo. A lua já havia se movimentado tanto, sabe-se lá quantas horas dos nossos dias teriam passado desde o anoitecer do solitário protagonista. E ele se levantou, com menos energia e ânimo do que quanto pôs-se primeiramente a trabalhar, mas sim com a frieza de quem não vê outra alternativa, por mais que não tenha qualquer garantia de resultado. E quando o braço lhe doeu ao extremo, parou, mas não chorou mais. Passado um tempo para recuperar o movimento, continuou e continuou. Sem quase pensar, agindo no automático. Até que... uma faísca! Seus olhos cansados até duvidaram, mas empenhou-se com mais ânimo e efetivamente conseguiu identificar o início de uma brasa. Daquela noite sem fim brotou uma luz. Aproximou a brasa das folhas secas e soprou, soprou. O fogo enfim vingou! Do oxigênio que ventava de seus pulmões soprou energia suficiente para alimentar as primeiras chamas. Aos poucos tinha uma fogueira. Podia se aquecer e até assar alguns pedaços da paca já meio estraçalhada. No céu, a noite já não era absoluta, o horizonte parecia indicar a chegada dos primeiros raios do dia. Mas o alívio de conseguir a chama aqueceu seu corpo e espírito. A ansiedade esvaiu-se o suficiente para que pudesse adormecer. No dia seguinte, ele já sabia, faria de tudo para preservar a brasa e seguir sua busca pelo bando. O desespero viria, o desalento viria, mas não podia desistir, ainda que só contasse com suas forças, abandonado que se sentia pelos espíritos ancestrais e pelas forças da natureza. Não havia qualquer certeza.
Mariana Penna, 2019.


quinta-feira, 11 de abril de 2019

Raiva



Durante muito tempo achei ser possível viver fugindo da raiva como se ela fosse algo ruim por essência. Mas não, nenhum sentimento humano existe à-toa. A raiva funciona como muitas vitaminas em nosso corpo, se você usa demais ela é nociva, mas sem ela também não se sobrevive.
Talvez por ter vivido uma experiência traumática de passar quase 4 anos num ambiente que só transpirava raiva, tomei crescentemente uma aversão ao conflito. Mas ele e seus sentimentos são inevitáveis e até desejáveis.
O problema é que a raiva parece ser plenamente controlável, ou melhor, parece ser possível sobrepô-la. A compreensão é o principal mecanismo para esse fim. Pelo exercício da empatia você tenta entender porque alguém age como age. O problema é quando acabamos aceitando tanto, compreendendo tanto, que em algum nível inocentamos em nosso íntimo aquele que perpetrou o mal. Ao invés de sentir e liberar a raiva, por vezes pedimos desculpas por expressar nosso descontentamento frente a agressão.
E agir sempre com cortesia tem seu preço. Não se contém a raiva, pois querendo ou não ela vai desaguar em algum sítio. Quanto mais isentamos o causador de nosso desconforto da culpa, mais ela toma rumo indevido. A raiva externaliza o mal-estar e nada melhor que o direcionar contra o que ou quem a causou.
Caso contrário o mal não devolvido volta, fica, humilha e vai nos apodrecendo por dentro. Aos poucos achamos que a culpa está em nós: afinal, por quê repetidamente nos maltratam? O que estamos fazendo de errado para que o outro aja assim conosco? A resposta já é expressão da minha liberação da raiva: estamos oferecendo o outro lado da face ao invés de devolver o tabefe. Cada vez que fazemos isso minamos nossa autoestima, matamos um pouco nosso orgulho próprio em troca de evitar o conflito, de ser a boa praça, a pessoa leve, compreensiva, fácil de se gostar. Mas a verdade é que esse “gostar” nem sempre é respeito. Um gostar sem respeito é um laço frágil demais. Pra quem agride é fácil gostar do conforto de não ser confrontado. Você se torna um cão que aceita o dono independentemente do que o seu senhor lhe faz. Apanha, mas volta com o rabinho abanando. O fiel “amigo do homem” não reclama, é compreensivo com tudo, aceita e devolve o mal com carinho. Cada vez mais prefiro ser gato e dar uma lanhada na cara do vacilão que me bateu.
Mariana Penna, 2019.