domingo, 15 de dezembro de 2019

A última confissão



Volta e meia conto essa história, sempre em tom jocoso. Para atrair meus ouvintes lanço logo uma sinopse: na última vez que me confessei, contei pro padre que não acreditava em deus. Alguns já riem nesse ponto e me perguntam se não é uma piada ou se não fiz propositalmente como um deboche com o religioso. A experiência, porém, foi antes dramática do que cômica. Dessa vez irei contar de forma mais fiel aos sentimentos que me levaram a esta situação aparentemente hilária.
Era uma época difícil pra mim, início de adolescência, escola nova na qual ao invés de amenizar meus problemas de inadequação social, estes se aprofundaram. Eu tinha treze anos, estava na sétima série, atual oitavo ano. Tinha acabado de sair de uma escola na qual eu havia estudado desde que comecei a aprender as letras e os números, aos cinco anos de idade. Apesar dos muitos anos lá, nunca me adequei. Esperava que com a mudança de ares as coisas pudessem ser diferentes, mas a verdade é que se tornaram mais difíceis do que nunca. Nesta segunda escola as zombarias alcançaram seu ápice. Os meninos, principalmente, estavam por trás dessas humilhações. Riam do meu corpo, da minha ausência de curvas, pois enquanto as outras meninas já desenvolviam características femininas, eu ainda era muito magrinha e tinha corpo mais infantil.
Para fugir dos deboches, recorri aos velhos subterfúgios: me esconder na igreja do colégio. Durante a maior parte da experiência escolar, o apelo a deus era meu principal recurso para pedir amparo frente às violências psicológicas que aquele mundo me impunha. Eu rezava e rezava, fazia promessas, frequentava regularmente as missas. Nada mudava, mas eu mantinha minhas esperanças sem questionar jamais o todo poderoso.
Até que o jamais deixou de o ser, e não foi uma escolha. Aos 13 anos a minha fé foi simplesmente se esfacelando. Não era de maneira alguma uma manifestação de revolta por não ter meus desejos atendidos, não foi uma decisão voluntariosa, era, ao contrário, um ato de razão. A lógica não me permitia mais crer. Simplesmente não fazia sentido. A Bíblia tinha sido minha grande verdade, guiou minha vida até então, estabeleceu sentido à existência. Mas seu sentido desmoronou diante de mim frente ao conhecimento sobre a história da humanidade. Os seres humanos existiam há muito mais de 2 mil anos, as religiões eram muitas e de diferentes matrizes, várias delas guardando poucos elementos em comum e nenhuma origem compartilhada. A razão me dizia: Por que a sua fé há de ser a certa se há e houve, no decorrer da existência humana, tantos outros credos?
A consciência disso me assombrava e eu pedia a deus pra me colocar de novo no rumo certo e me dar a fé da qual eu tanto necessitava para manter meus horizontes inabalados. Mas não adiantava, nada adiantava. E eu não tinha com quem compartilhar aquilo, pois não queria que ninguém soubesse. A fé cristã era um elemento que por toda a minha vida consciente, até então, havia dado as minhas bases de sustentação. Porém, eu não tive escolhas, ela simplesmente desmoronou, e toda a barreira de contenção que tentei construir parecia inútil frente à força das pedras rolando ribanceira abaixo.
Mas um padre talvez pudesse me ajudar, era meu recurso último. Fui buscá-lo justamente em meu santuário, na igreja da escola. Era um padre estrangeiro, jovem, seu sotaque sugeria origem hispânica, mas não perguntei, eu estava ali para tratar o meu drama, meu grande drama. A igreja estava vazia, éramos apenas nós dois ali presente. Estava um pouco escuro, dando um ar sombrio ao ambiente. A confissão não se ocorreu no confessionário, mas sentamos em bancos regulares ao final da capela. Desde o Concílio Vaticano II foi-se evitando certas formalidades e o distanciamento entre o clero e os leigos foi desencorajado. Sentávamos lado a lado.
O padre deu início ao rito da confissão e me perguntou sobre os meus pecados. Foi então que disse a ele não saber se era propriamente um pecado, pois eu não tive qualquer intencionalidade frente ao ocorrido, o fato era que eu simplesmente não conseguia mais acreditar em deus e precisava de ajuda por desejar de todo meu coração reverter aquele quadro. O padre ficou estupefato com a declaração. Tento imaginar a surpresa que teve ao ver aquela menininha de 13 anos, com aparência de 11 ou menos, dizendo que não conseguia acreditar em deus. Ele então começou a me interrogar sobre meus hábitos religiosos. Queria saber se eu rezava todos os dias. Respondi que invariavelmente ao amanhecer e antes de dormir e muitas vezes previamente às refeições. Perguntou se eu ia com frequência à igreja. Contei-lhe que participava das missas todos os domingos.
Conforme o jovem padre ia tentando contornar a difícil situação em que lhe coloquei em busca de uma solução para o problema, falhando miseravelmente sua postura tornava-se cada vez mais irrequieta e de desconforto. Enquanto isso eu chorava e chorava cada vez mais intensamente conforme percebia que nem o padre podia me dar respostas para meu problema. Nem ele poderia fazer as coisas voltarem a ser como eram antes. Ao final das infrutíferas tentativas, o jovem sacerdote entregou os pontos. Me pediu perdão pois não tinha como me ajudar. Seus olhos marejaram ao expressar esta desistência. Ele havia perdido aquela batalha, quiçá internamente se iniciava outra batalha. Fui embora, inconsolada. Nos despedimos, não lembro se ele me abraçou ou não, mas lembro do seu olhar de tristeza e desalento que valia por um abraço.
A evasão da fé não foi uma escolha, simplesmente aconteceu. Foi o fim das esperanças num porvir místico. O reino de paz, harmonia e eterna felicidade divina nunca mais serviu de consolo para as frustrações da existência. Não havia mais uma promessa de um futuro melhor, não havia mais esperança na salvação em que eu pudesse me apegar. Por mais dois anos continuei a frequentar a igreja e não compartilhei com mais ninguém a minha falta de fé. Por vezes eu acreditava que ela podia voltar, mas não durava muito e mais uma vez eu me encontrava só. A quem eu poderia recorrer? A que esperanças me agarrar? Não havia. E esta falta de caminhos e de sentido era desesperadora. Mas se por um lado significou perder meu chão, por outro marcou o fim da tutela transcendental na minha vida. Eu não era mais uma serva de deus, pois deus não estava mais lá. Por um breve tempo isso significou solidão e desespero apenas. Mas passados alguns anos isso significaria autonomia e liberdade. Sem mais os comandos nem mandamentos divinos, meus valores deveriam ser guiados por princípios por mim mesma estabelecidos e conscientemente abraçados. Enfim eu podia escolher e assumir a responsabilidade por essas escolhas.
Se a orfandade de deus me deixou temporariamente sem rumo, sem horizonte, nem sentido de existência, mais tarde outras utopias preencheram esse vazio. No passar dos anos, também as utopias foram desmoronando e abrindo espaços para novos vazios. Hoje tenho menos medo da perda de sentido, da perda de um objetivo de vida. Parece que ser e me responsabilizar pelos prazeres e pelas dores da existência se tornaram mais aprazíveis do que o apego à esperança em algo que me transcende e sua promessa de realização suprema. Seja esse algo deus ou a revolução. Mesmo sendo alguém que estuda e entende as utopias e ucronias como importantes motores da história humana, sou eu própria cada vez menos uma pessoa utópica.

Mariana Penna, 2019.