sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Confidências com o desconhecido


Ontem eu troquei confidências com um desconhecido. É mais fácil dessa forma, é como uma confissão sem penitência, porque na ausência do padre, não há julgamento, dois pecadores trocando ideia sobre seus pecados.
Ontem eu troquei confidências com um desconhecido, mas não eram bem confidências. Não escondo grandes segredos, o que não sei é carregar grandes sentimentos.
O desconhecido, muito mais experiente, sabia disso, sabia de outras coisas, e sabia que ele próprio também nunca aprendeu a lidar com isso.
Não me propôs uma penitência, mas o desconhecido me deu conselhos, conselhos que ele próprio não saberia acatar. Disse: fuja!
Lutar contra mim mesma? Não há fuga possível de si própria. Ou há, o suicídio talvez. Não me apetece, nem um pouco.
Hoje só cruzei desconhecidos, nenhum trocou confidências ou me deu conselhos.
Hoje eu segurei meus instintos, tentei aprisionar meu descontrole, mas ele continua em mim. Fingir que ele não existe é insuportável, porque ele está aqui, como um encosto me tentando. Mas dar vazão a ele pode ter efeitos indesejados.
Ontem, eu e o desconhecidos concordamos: é uma pena que não exista antídoto para a falta de leveza.
Mas hoje, o pôr do sol deixou o céu rosa, completamente rosa, ainda que a câmera não tenha conseguido captar essa intensidade.


Mariana Penna, 2016.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Amizades (e inimizades) descartáveis

Aeroportos são simultaneamente lugares interessantes e irritantes. Neles você presencia desde cenas clássicas do "complexo de vira-latas", até interessantes intercâmbios culturais. Vou contar algumas dessas minhas experiências hoje. A primeira foi de um patricinha extremamente irritante, dessas que fala que brasileiros não prestam porque são mal-educados e fura-fila (detalhe: ninguém estava furando nenhuma fila). Depois do check in, ela fez questão de fingir que ia levar seu carrinho para o local adequado dizendo para a mãe que era preciso ser uma pessoa educada - leia-se "civilizada", diferente desses "bárbaros" e pobres. Deixou no meio do caminho. Bem, até aí nada de novo, cenas típicas dessa gente que se auto intitula "elite", pinta de loiro os cabelos e diz que tudo que vem dos países do norte é bom e superior. Herdeiros do passado colonial (e de seus privilégios) adoram evocar em palavras e atos essa ancestralidade, ainda que falsa, pois, igualmente aos colonizadores ibéricos, são lambe botas de países mais ao norte. 
Mas continuemos com a parte mais interessante da história: uma senhora de provavelmente uns 65 anos veio carregar o celular ao meu lado. Negra, evangélica e moradora de São Paulo, desde que passou a ter direito a viagens gratuitas, devido a sua idade, passou a viajar sempre de ônibus para visitar a família e conhecer lugares novos. Me disse que gosta muito de viajar, em que pese as vezes ter dor por artrose. Mas essa era sua primeira viagem de avião e estava um pouco nervosa, queria me pedir umas dicas. A família ligava toda hora preocupada. Começamos a conversar e o papo foi desde truques para driblar o efeito da pressão nos ouvidos, preços altos da comida no aeroporto até uma profícua conversa sobre violência de gênero. Ela começou a se queixar do alto índice de mulheres em São Paulo que eram mortas por seus próprios maridos e namorados, e após um certo tempo de conversa ela própria assumiu ter sido durante muitos anos vítima de violência. Falou sobre a dificuldade de romper com um relacionamento na época dela, mas como apesar dos estigmas e de 4 filhos para cuidar, o divórcio foi a melhor opção. Era uma mulher muito simples, de fala suave, calma, daquelas pessoas com quem você pode ter uma conversa tranquila mesmo sobre assuntos nos quais haja divergência e tivemos talvez apenas uma: ela achava que a agressividade masculina era algo da natureza e eu dizia ser da criação, mas o tom da conversa foi tão amistoso que não tivemos nenhuma polêmica, mas sim uma troca de opiniões muito boa. Em suma, foi uma boa amiga “descartável”, como diria Tyler Durden em Clube da Luta. Nos desencontramos já no momento do embarque.
Entrei no avião, ao meu lado uma mulher de aparência oriental não largava o celular antes da decolagem, e eu que sou medrosa pensando: “Ai se esse avião cair por causa disso!” Risos! Vi que ela escrevia em caracteres chineses (no momento não sabia ainda que eram chineses, também não entendo nada disso). Mas enfim, a comissária mandou ela desligar e então ela pegou uma revista. É, ela parecia hiperativa. Depois de folhear a revista, mandou para mim um “Do you speak English?” e começamos a papear. Pois bem, ela era chinesa, imigrada há muito para os Estados Unidos e hoje é nada menos que uma alta executiva da JBS, corporação dona da Friboi, maior empresa de matar boizinhos do mundo. Sua função, pelo que entendi, era intermediar as exportações da empresa para a China. Sentada ao lado da inimiga, mas que pelo menos era bastante simpática, fiquei pensando que faz uma ou duas semanas compartilhei uma matéria que mostrava que a Friboi era líder em acidentes de trabalho, mas deixei quieto e logo a conversa mudou para signos zodiacais e horóscopo chinês! Risos! Beleza, a executiva falou qual era meu signo e disse o que isso significava. Falou também que precisava de um namorado brasileiro para aprender português. Conversa amena, até ser interrompida pela liberação do uso de aparelhos eletrônicos e lá voltou a moça para seus caracteres indecifráveis para mim. No pouso, novamente conversamos sobre para onde ia cada uma. Ela disse que tinha uma reunião importante com um grupo de vigilância sanitária da China, o qual ia avaliar a empresa, aí não resisti e falei sobre os acidentes de trabalho. Ela disse que não sabia que eram tantos, mas que a JBS tinha uma política de indenizações generosa... ai, ai! Mas tudo bem, continuou amistosa nossa relação. Ela foi uma “inimiga descartável” também muito agradável. Risos!  

Mariana Penna, 2015.