domingo, 28 de novembro de 2021

História das mulheres da minha família: bisavó Antônia

 

Este texto não é um artigo acadêmico, não tem nenhum compromisso em fazer um registro fidedigno do passado. Ele é um compartilhamento de memórias e estórias familiares, passadas de geração em geração, acrescido de alguns invencionismos meus e daquelas que me antecederam, junto com hipóteses, talvez, mirabolantes. Não há pesquisa, só suposições, datação aproximada. Mas é justamente nessa falta de rigor que vão se transmitindo as memórias familiares e, com elas, seus ensinamentos. Os traumas do passado falam ao presente e as histórias das mulheres mortas gritam às suas descendentes do futuro: “aprendam com minha experiência e busquem outras alternativas. Quem sabe, em seus dias, os limites de possibilidade sejam outros e vocês tenham chances de fazer diferente”.

Começo pela estória possivelmente mais excêntrica e cheia de mistérios e curiosidades. Talvez, por isso mesmo, aquela que, desde criança, sempre me chamou mais a atenção. É o caso da minha bisavó Antônia.

Minha mãe, Regina, falava de sua avó paterna com especial admiração. Pintava a mesma como uma mulher extremamente culta. E, enquanto me contava sobre ela, eu visualizava na minha mente uma mulher bem vestida, ainda que de maneira austera, sentada em frente ao piano e tocando com a maior naturalidade algum clássico dificílimo. Dizia que ela era muito erudita, além do piano, era fluente em francês e alemão, e frequentemente traduzia as conversas de negócios para o marido ignorante.

Pela forma como minha mãe contava sobre esta avó, ficava evidente se tratar de uma pessoa que ela tinha por exemplo. Certa vez, minha mãe brincou em tom jocoso: “eu sempre quis ter filhas intelectuais e consegui influenciar vocês”.  Me parece que era a imagem da sua avó que ela projetava como um modelo que deveríamos seguir. Provavelmente por isso ela gravou tão fortemente na memória o ensinamento de Antônia.

Mas antes de chegar a ele, vou apresentar um pouco mais do que sei, ou penso saber, sobre essa mulher tão intrigante para sua neta.

Sua origem em si já é algo de interessante. Ela nasceu no final do século XIX no vilarejo de Dende, no interior de Angola, colônia portuguesa à época. Disso há registros, mas a própria Antônia não contava muito sobre esse período da sua vida, era um passado oculto. As estórias circulavam indiretamente e, principalmente, após sua morte. Apenas na maturidade minha mãe desenvolveu maior curiosidade e apresentou a mim um possível enredo sobre a vida de sua avó.

Olhando certidões e documentos antigos, Regina percebeu algo de muito peculiar: Antônia tinha o nome completo de seu pai na certidão de nascimento, mas o nome da mãe aparecia apenas como “Maria”. Diziam que ela nasceu e viveu em Angola até sua adolescência, quando o pai faleceu. Reza a lenda que ele era rico, grande proprietário, com terras a perder de vista, do tamanho do Rio de Janeiro. Branco e português, teria deixado a herança para sua filha, que foi enviada a Portugal e ficou aos cuidados do tio.

Este tio não caiu nas graças da memória familiar, ao contrário. Foi pintado de interesseiro e possivelmente golpista. Como tutor, internou Antônia em um convento e foi lá que ela recebeu sua educação. Quando adulta, a angolana acabou por migrar mais uma vez, agora para o Brasil, após casar-se por procuração, ou seja, à distância, com um português que já tinha emigrado para o Rio de Janeiro.

Sobre o homem com quem ela se casou, Fernando, conta-se que saiu fugido de Portugal para o Brasil. Envolvido em alguma atividade no mínimo não muito aceita, o jovem roubou dinheiro da igreja onde o irmão era padre e comprou sua passagem para nossas terras. Aqui chegando, ocupou ofícios sem nenhum prestígio social. Diziam que trabalhava de “burrinho sem rabo”, como eram conhecidos pejorativamente os carregadores de mercadorias em carrinhos sem tração animal. No entanto, em não muito tempo, este degradado progrediu e tornou-se um respeitável e bem sucedido comerciante no ramo de tecidos.

Neste ponto que entram algumas das minhas especulações juvenis, que bem convenceram minha mãe e foram ganhando novos contornos conforme ela agregava mais elementos. Vamos por partes, a começar pelos questionamentos. Antônia e Fernando já se conheciam antes do casamento? Ninguém sabe informar. Fernando enriqueceu do nada? Minha desconfiança quanto aos limites da noção de meritocracia colocava não uma, mas várias pulgas atrás da orelha. Foi daí que várias hipóteses foram surgindo e eu me divertindo com meu ensaio de “historiografia” adolescente:

O tio de Antônia não chegou a descapitalizá-la totalmente como diziam as más línguas.  Na verdade, ele teria concedido um bom dote a Fernando para casar com sua sobrinha. Isso explicaria os recursos empregados no comércio. Na minha primeira versão da história, a conclusão era de que Antônia comprou um marido branco, mas com o passar do tempo comecei a questionar o quanto de agência ela de fato teve nesta suposta “compra”.  Assim, outra hipótese é a de que o casamento foi um mecanismo utilizado pelo tio para afastá-la de Portugal e dos olhares racistas que certamente se direcionavam à jovem, mas resvalavam nele e no status de sua família.

Nada disso pode ser comprovado, que eu saiba não há registro. Mas há outras memórias menos especulativas.

Minha mãe é uma observadora perspicaz e percebia que Fernando nunca foi um homem amoroso com Antônia. Não dava as mãos para ela e andava sempre à sua frente na rua. Mas dependia dela para ir ao teatro e lugares requintados para realizar seus negócios com estrangeiros. Porém, seu proceder era recorrentemente bruto e grosseiro com as pessoas em sua volta. Teria se adocicado um pouco quando mais velho, mas não muito. Antônia, ao contrário, é retratada por minha mãe como serena e refinada. Contida nos gestos e no comportamento em geral. Serviu de exemplo para minha mãe mais pela sua imagem de cultura e elegância do que por compartilhar memórias sobre sua vida.

No entanto, em um breve momento de indiscrição, Antônia não pôde se furtar de aconselhar a neta. Em um misto de desabafo e recomendação, sugeriu à Regina que ela nunca se relacionasse com um homem de nível cultural inferior ao dela. Minha mãe levou este conselho a sério e o abraçou como um princípio orientador. Desde crianças, ela repetia para mim e minhas irmãs o conselho de sua avó. Nem riqueza, nem aparência física deveriam ser critérios para a escolha de um homem, mas sim sua formação intelectual.

Independentemente de haver ou não validade neste conselho, que certamente não teria poupado Maria da Penha do seu drama, o que interessa aqui é o seu significado mais profundo: a experiência de opressão do passado deseja libertar o futuro. Antônia tinha consciência de seu drama e da armadilha que lhe fez prisioneira. Queria salvar a neta de um destino semelhante. E foi assim, certa ou errada, que plantou sua semente. Por mais que sua história seja repleta de lacunas e especulações, às quais ela nunca fez muita questão de resolver, seu conselho ressoa com maior potência.

Como diria Walter Benjamin em suas Teses sobre a História, é preciso participar do “encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa”. Não para julgá-las e cobrá-las quanto ao que não foram capazes de resolver, mas sim para aprender com elas, “lutar por um passado oprimido” e “despertar no passado as centelhas da esperança”.

A educação que damos aos nossos descendentes é costumeiramente pautada nos alertas para que evitem incorrer em nossos erros, geradores de sofrimento, especialmente aqueles que não pudemos ou não conseguimos remediar, fosse por nossas limitações individuais, psicológicas, fosse pelas limitações societárias e históricas, que restringiram nossa liberdade de agência e limitaram o exercício de nossas vontades ao socialmente aceito ou imposto.

Mariana Affonso Penna, 2021.

 


 

domingo, 7 de novembro de 2021

Erudição

 

Meu terceiro namorado dividia um apartamento com dois irmãos gêmeos em Vila Isabel, zona norte do Rio. Eu morava em Vaz Lobo, mas no fim das contas passava mais tempo por lá do que em minha própria casa. Com isso, acabava por observar o cotidiano dos irmãos e, neste processo, a admiração por eles foi surgindo e se ampliando. Durante o dia, reparava como cada um empregava seu tempo. Um deles era professor de francês, fluente em seis idiomas. Logo pela manhã, o seu passatempo era pintar ideogramas japoneses. Depois costumava estudar idiomas e, pela noite, ao chegar em casa, se encantava com os astros através de um telescópio. Não costumava sair muito, mas quando o fazia gostava de ir em encontros nos quais pessoas estrangeiras e poliglotas ficavam conversando, aprendendo e trocando experiências. O outro fazia doutorado em filosofia, tocava piano e violino. Convivemos menos, ele era menos caseiro que seu irmão, parecia vez ou outra curtir uma balada. Em comum, ambos eram muito simpáticos, de bem com a vida e super humildes, não ficavam se exibindo em nada. Seus lazeres eram costumeiramente produtivos, usavam grande parte de seu tempo para aprender coisas novas, e esta atitude não era nada forçada, algo pra mostrar superioridade, muito pelo contrário, era perceptivelmente genuíno, faziam isso para si mesmos, por gosto puro e simples. Compartilhavam ainda uma apreciação cultural muito diversificada. Amavam e entendiam igualmente de arte erudita e popular, e isso valia pro cinema, pra música, pra literatura. Que eu me lembre, não desprezavam nada, nenhum estilo, ouviam do clássico ao funk, da bossa à sofrência, da escrita erudita à chamada, pejorativamente, de baixa literatura. A moral da história? Bem, acho que é meio óbvia.

Mariana A. Penna, 2021.