A jovem caminhava rápido. Nas
mãos um mapa impresso do Google Maps com a rota a ser seguida até seu destino.
Estava muito adiantada em relação ao horário marcado, ainda assim, temia se
atrasar. Suas mãos suavam frio. Conferia em seu mapa duas a três vezes o nome
da rua para ter certeza de que estava certa antes de virar. Estava perto do
destino, mas continuava a andar apressada. Chegou. Faltava quase meia hora. Não
podia se apresentar antes do combinado, sentou no banco do ponto de ônibus.
Tentava se acalmar, bebia uma água, mas a percussão da bomba cardíaca não
parava de soar. A espera chegou ao fim: 10 horas em ponto. Foi para a portaria
do prédio, precisava digitar o número do bloco e do apartamento seguido de
asterisco no interfone. Tremia, mas concluiu essa missão. Ele atendeu... tinha
uma voz simpática e suave. Ela se identificou e o homem pediu que subisse.
Encontrou-o à porta. Ao recebê-la, antes de beijar-lhe o rosto, segurou suas
mãos. A jovem sentiu-as delicadas, assim como lhe pareceu suave seu rosto ao
encontrar-se com o seu. Se do ponto de vista visual a flacidez da pele idosa
não é normalmente considerada agradável, no aspecto tátil, sua textura se faz
bastante aprazível, sendo possivelmente mais afável ao toque a pele macia de um
idoso à consistência rígida da pele jovem. Denilson a conduziu até a sua sala.
Ela sentou-se num sofá, ele numa poltrona. Entre eles uma mesinha de estar.
- Tudo bem, querida? Pode me mostrar
os trabalhos?
Um gelo na espinha e o pensamento
automático dizia: “estúpida! ”. Olhou para seu interlocutor, envergonhada, e
desculpou-se pelo lapso.
- Sem problema, mas é que são
tantos textos que recebo por e-mail que fica inviável imprimir. Dou uma olhada
por alto, mas não dá para registrar o conteúdo de cada um, entende? Por isso eu
precisava que você tivesse trazido uma cópia impressa para mim.
“Burra, burra, burra! ”, que
pesado era o arrependimento por essa mancada. Seu amigo havia dito para não
chegar de mãos vazias, ela ignorou, e agora lá estava sem nada para mostrar.
Pensou no quão ocupado devia ser o famoso escritor e quanta sorte ela teve ao
conseguir marcar uma reunião! Ela, uma simples mortal, e Denilson a recebia
agora, em sua própria casa! Parecia um sonho estar ali, de frente para seu
grande ídolo. Mas a jovem tinha que estragar tudo, era tão óbvio que precisava
ter trazido os textos, como não pensou nisso antes!
- Esta reunião é como uma
consulta médica, não posso dar um diagnóstico sem poder verificar antes os exames
– disse o escritor em tom amigável, como um afago de consolo – Se a paciente
esquece os exames, precisamos marcar uma nova consulta, ok? Mas podemos ir
conversando sobre os sintomas enquanto isso, pode ser? – disse Denilson,
aliviando o desconforto da jovem.
O escritor falou com tamanha
simpatia que tudo que ela pensava era: “Os céus devem estar sorrindo para mim,
isso não pode ser real! ”. Era bom demais para ser verdade e, passado um pouco
o nervosismo, começou a falar sobre seu romance, seus contos e poesias. Não é
que se sentisse verdadeiramente à vontade, era difícil estar na posição de uma
mortal diante de um deus, mas Denilson facilitava muito as coisas, não falava
como um mestre e sim como um colega. E mais, ele parecia realmente se
interessar. A jovem levantava questionamentos, ouvia e anotava. Provavelmente a
origem humilde do célebre autor o permitiu escapar da arrogância tão típica do
meio, pensava ela. Mas era um deus, ela não podia evitar sentir dessa forma, e
estar em sua casa era como ter sido convidada para visitar o Olimpo.
Despediu-se, novamente tocou as
mãos suaves, o agradeceu em verbo e com os olhos. E os dele eram tão gentis,
que a fizeram sorrir. Saiu leve, seu dia estava ganho. Era mais do que ela
podia imaginar, e nem sua falha grave lhe tirou a oportunidade. Só podia ser um
sonho, pela primeira vez na vida parecia que tudo poderia dar certo, que não
haveria limites à realização de seus desejos. O mundo estava lindo, o sol
brilhava de outra forma, o vento acariciava, não havia incômodo, tudo era
aprazível. Em um mês o veria novamente. Era hora de organizar bem tudo o que
tinha produzido e aguardar ansiosa.
A rotina já não a incomodava, nem
mesmo as dondocas das mães da escola particular primária em que trabalhava lhe
destruíam o humor. O foco era a próxima reunião com Denilson, nada mais
importava, todo o tempo que lhe sobrava era dedicado a isso, queria dar uma boa
impressão.
Um mês se passou, mesma hora,
mesma rua, mas agora era uma sexta-feira. Escolheu uma roupa discreta, mas que lhe caía
bem, colocou seu perfume favorito, saiu com a mesma antecedência de antes. A
ansiedade não era menor que a da visita pioneira. Mais uma vez estaria de frente
a seu grande ídolo. Trazia pastas e mais pastas debaixo dos braços, já não
consultava tanto os mapas. Vacilou ao virar uma ou duas ruas, mas em geral a
memória não lhe falhou. Pensava no quão simpático Denilson lhe tinha sido no
último encontro e um sorriso emocionado lhe acompanhava o pensamento.
Chegou cedo novamente, mais uma
vez as mãos suadas aguardavam no ponto de ônibus.
10 horas, tocou a campainha. Sua
voz agradável pediu para aguardar. Desceu até o portão do prédio, o mesmo
sorriso, as mesmas mãos suaves, mas agora desculpou-se pelo inconveniente: era
dia de faxina – disse – e convidou-a para um café na esquina.
Dois expressos, sem açúcar
apreciavam ambos. Ela apreciou também esta coincidência, sentia-se em alguma
medida a ele semelhante. Acomodados, se entreolharam e ele prontamente
interrompeu o brevíssimo silêncio:
- Então querida, dessa vez trouxe
os materiais, não é? – perguntou em tom amigável enquanto olhava para as pastas
que ela carregava consigo.
A jovem confirmou sorrindo
discretamente e Denilson continuou:
- Na Grécia Antiga, os médicos
percebiam no olhar, nos traços e expressões faciais das pessoas os sinais de
saúde ou doenças que a estes correspondiam. Nós já não temos essa capacidade
dos gregos antigos, se eu tivesse, olhando assim para você, daria certamente um
parecer favorável, mas como estamos na era dos médicos modernos, precisamos ver
os exames para diagnosticar. A mesma coisa é com a produção textual de uma
jovem escritora, preciso ter em mãos a expressão do que se passa na sua cabeça
transformada em letras, palavras.
Como uma adolescente frente à
primeira declaração romântica recebida, ela se emocionou ao mesmo tempo em que
se perguntava se ele dizia isso para todas as pessoas, se era sua forma de ser
agradável. De qualquer forma, se a intenção do escritor era elevar-lhe a
autoconfiança para tornar mais agradável aquele encontro, surtiu o efeito
planejado.
Começou pela pasta de crônicas,
entregando para exame algumas das que tinha selecionado. Depois, poesias, por
fim, o esboço dos capítulos e temas centrais a serem desenvolvidos em seu
romance. A este último se ativeram com maior atenção. Cada sugestão de Denilson
parecia-lhe genial e em alguma medida sentia-se ela própria genial por ser
digna de receber tais comentários. Magnífica, esta seria a palavra para
descrever a circunstância em que se via inserida. Não conseguia distinguir o
que lhe deixava satisfeita: se era saber que seus escritos valiam alguma coisa
ou se era pura e simplesmente o sentimento de reconhecimento. Terminada a longa
conversa e repleta de anotações, despediu-se mais uma vez de seu ídolo. Sentiu
novamente a suavidade de suas mãos e o toque aveludado de seu rosto. E ele, ao
despedir-se dela:
- Querida, não deixe de me enviar
o texto final de seu romance. Será certamente um belíssimo trabalho e de
leitura aprazível.
Mais uma vez saiu flutuando. Não
caminhava, flutuava por entre as ruas. Não respirava, inspirava e expirava leveza.
As cores vicejavam com uma exuberância nunca vista. Tocava as folhas dos
arbustos e plantas que cruzavam seu caminho. Sentia e agradavam-lhe as texturas
de cada folha, caule, pétala. Foi para casa satisfeita.
Por um ano e meio, entre trabalho
intensivo e momentos de procrastinação, concluiu o romance tão amado. Não se
sentia insegura em relação a ele. Desfrutava com orgulho cada capítulo. Por
vezes, quando relia, nem podia acreditar que um trabalho daquela qualidade fosse
fruto de sua própria mente. Era chegada a hora de remeter àquele a quem foi seu
mestre e muso inspirador. A cabeça imaginativa não parava. Imaginava-o lendo
deslumbrado. Visualizava mentalmente Denilson apertando forte a sua mão e
dizendo o quanto ficou surpreso e satisfeito, que se tratava de uma obra da
mais alta qualidade, que sua publicação, que sua publicização era imperativa! E
foi sonhando acordada que redigiu o e-mail informando ao escritor tão admirado
sobre a conclusão de seu trabalho. Mal podia esperar pela resposta!
Passaram-se
2, 3, 4, e no quinto dia Denilson respondeu. Desculpando-se pela demora,
pediu-a que o rememorasse sobre o que se tratava a história. Afinal, eram muitos
jovens escritores que lhe pediam aconselhamentos. Leu atônita a mensagem. Não a
sentiu como um balde de água fria, mais parecia um mergulho no Oceano Ártico.
Engoliu seco e conteve as lágrimas. Como boa brasileira, a esperança só pode
morrer por último, assim focou-se no trecho final da resposta do famoso autor, no
qual pedia que enviasse uma cópia para sua apreciação.
Não quis
esperar, saiu de casa atarantada. A cópia já estava impressa. Uma linda
dedicatória, escrita com o mais cauteloso esmero, numa letra praticamente desenhada,
enfeitava a contracapa. Bastava entregá-la. Pensou em entregar-lhe em mãos. Mas
refletiu se não seria inapropriado. Foi a uma agência de correios e postou com
máxima urgência. Na volta para a casa, o mundo não estava tão colorido, mas sim
agitado, revolto, acelerado como sua bomba cardíaca. Caminhava no mesmo ritmo,
e neste mesmo ritmo lhe perturbavam os pensamentos. Acelerados, contraditórios,
pintavam cenários idílicos e catastróficos em quase simultaneidade. Torceu o
pé. Droga! Não era uma pessoa mística, mas não podia deixar de pensar na ideia
de um mau presságio.
Foi para
casa, chateada. Tomou um banho, repetiu um ritual tantas vezes praticado:
chorar no chuveiro. E esperou o tempo passar.
Seis
meses correram, seis meses sem nenhuma resposta. Pensava com frequência nisso,
aguardava ansiosa e não desejava parecer insistente. Mas teria a entrega sido
concretizada? Melhor averiguar. Insegura se esta era a melhor decisão, quis
encerrar de vez a angústia. Escreveu um e-mail perguntando se a encomenda havia
chegado às mãos de Denilson. Desta vez a resposta não tardou. Num curto e seco
e-mail, ele afirmou que seu manuscrito foi devidamente entregue pelos correios.
Um “atenciosamente” encerrou sua mensagem.
Não chorou.
Só respirou em ritmo mais acelerado. Os pensamentos mudaram, esvaziaram-se em velocidade,
pareciam vagar. O mundo ficou cinza. Mas amanhã seria outro dia.
O tempo
passou. Três anos. Na escola primária, as mães dondocas e moralistas continuavam
a lhe incomodar. As ruas continuavam muito barulhentas. Mas as vezes, quando
chegava em casa, abria a estante da escrivaninha, olhava esperançosa para seu
romance impresso e pensava em enviar para alguma editora aleatória, quem sabe,
né? Quem sabe...
Mariana
Penna, 2014-2018.