sábado, 11 de novembro de 2017

William e Cecília


Deslizei minha mão pelo seu rosto, contornando seu maxilar. Delicadamente percorri sua espessa e longa barba grisalha com as pontas de meus dedos. Inclinando levemente a cabeça em minha direção, ele acordou e devolveu meus carinhos com um sorriso tão terno e um olhar tão doce que era capaz de embelezar aquele cenário. Sorri-lhe de volta, mas meus olhos lacrimejaram. Tomei suas mãos nas minhas e com meu polegar lhe massageava a superfície de sua pele... tão macia. Se a rugosidade que o tempo provoca ofende a muitos o olhar, a delicadeza de sua textura em nada deveria desagradar os caprichos estéticos do tato.  Foquei na sensação do toque como um consolo. Mas a visão não permitiu que seus efeitos fossem duradouros. Coletores, tubos de ensaio, garrotes, compressas, sondas, caixa de luvas, seringas, agulhas, mangueiras de oxigênio, soro, remédios. Objetos tristes espalhados por aquele quarto ou interagindo forçosamente com o corpo de William, na minha frente acamado. Respirei fundo para segurar as lágrimas. Olhei para as paredes vazias de cor. Nem um pouco ajudavam. Tomei coragem e direcionei novamente minha mirada para aquele ser incrível deitado ali em minha frente. Com isso minha mente se permitiu sair dali, daquele espaço e daquele momento. Viajou para nossa casa, nossa última casa. Percorreu cada cômodo e de lá saltou para outra e outra casa em que habitamos nessas tantas décadas compartilhadas. Nossas bagunças, nossas decorações, nosso tudo misturado. Nossos livros rabiscados de anotações, ora de um, ora de outro. Compartilhamos leituras e polêmicas, essas coisas que sabem bem os casais que se especializaram na mesma área do conhecimento. Caminhamos sempre juntos, desde os dezoito anos quando nos conhecemos na turma da faculdade. Partilhamos sonhos, bebedeiras, o colchão de solteiro no alojamento estudantil. Descobrimos juntos o prazer, revivendo-o e revisitando-o de maneiras diferentes ao longo das décadas. Nos transformávamos nesse contínuo reelaborar da sexualidade, intercalando tédios, mesmices, mas também renovações. Aprendemos a ser adultos, a planejar e construir um futuro. Até a difícil tarefa de dividir os afazeres domésticos e os conflitos de negociar interesses individuais num projeto coletivo, ainda que só de nós dois. Não tivemos filhos, sequer animais de estimação. Nunca foi completamente refletido. A maior parte dos tempos, não era item dos nossos planos. Em alguns momentos não nos esforçamos para evitar, porém também nunca nos empenhamos em tentar. O tempo se encarregou de dissipar qualquer possibilidade. Nunca me incomodei de fato, creio que William também não. Talvez tenhamos ficado muito egoístas para incorporar outro ser em nossas vidas. Não foi simples conciliar tudo que desejávamos, e queríamos muito. Mestrado, doutorado, pós-doutorado, núcleos de pesquisas, revistas acadêmicas. Passamos perrengue, ora um conseguia uma vitória e o outro encarava uma derrota. Inveja, irritação, até competição inconsciente tiveram que ser contornadas. Nem sempre foi fácil. Por vezes nossa relação parecia uma montanha russa, com altos e baixos extremos. Em outras circunstâncias, uma assimetria de desejo e interesse desmotivava e parecia querer nos dividir, nos assombrando como faz a tantos casais. Mas permanecemos juntos, sempre contornando, ou até encarando de frente os furacões que se avizinhavam de nossas vidas.  Assim como nossas bagunças pela casa, já não sabíamos nos dissociar. Tornamo-nos tão um do outro que, da mesma maneira que os livros misturados na estante, era difícil saber até que ponto ainda éramos indivíduos. Não me arrependo, mas ... volto para o quarto do hospital. William me mira com os mesmos olhos de antes, suaves, doces, mas atentos. Mesmo eu viajando em lembranças, reflexões e pensamentos, sei que de mim seu olhar não se desligou um só momento. Com eles meu amor me leu todo o tempo: - E agora, Cecília?
Mariana Penna,

Novembro de 2017.


2 comentários: