quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A sabedoria vivendo na rua


           Ao passar embaixo do viaduto da Pinheiro Machado, em Laranjeiras, uma cena me chamou a atenção: um homem de meia idade com aparência de mendigo estava deitado num banco, de barriga para cima, tinha o braço esquerdo levantado para segurar uma folha na altura de seu rosto, e na mão direita, uma caneta a escrever nessa folha.
Eu ainda estava um pouco longe quando o avistei. Visão tão exótica inspirou um mundo de pensamentos a assaltarem minha cabeça, fazendo dela refém por alguns segundos. Logo me veio em mente um caso talvez semelhante, um aparentemente louco petropolitano que perambula pela cidade a escrever em seu caderninho secreto. Esse homem misterioso de tempos em tempos habitava meu imaginário, e da mesma forma, a figura do viaduto me abordou. Seria ele um intelectual mendigo? Filósofo cuja sabedoria tão profunda não pode ser compreendida por uma sociedade capitalista tão alienada e alienadora? Sim, minha visão romântica o fez um gênio, um homem letrado numa posição em que um analfabeto era esperado. Ele era uma exceção, um ser especial, sem dúvida diferente, o qual mesmo tendo vivido na total adversidade, desenvolveu habilidade escrita e filosófica além do comum, nunca esperadas em uma classe forçada a viver abaixo da subordinação e ignorância. E justamente por ter esses conhecimentos, ele negaria toda riqueza, indo ao extremo de viver dos restos materias da sociedade, negaria qualquer manifestação de orgulho próprio, vivendo na mais baixa camada do status social na qual ele não pode ser percebido pelos outros, a menos que por acidente! Sim, e por acidente eu poderia ter acesso ao que ele escrevia para si mesmo, como em um diálogo entre a dualidade de cada ser. Sim, ele nem ao menos escrevia para ser lido, tão gradiosa alma não ostentaria tal aspiração, o filósofo-mendigo não teria qualquer arrogância, não pensaria em poder ensinar algo a alguém. Não, nenhum poder, negação total ao poder!
E eu me aproximava, louca de vontade de poder ler ao menos uma linha do que ele escrevia. Uma linha, pensava eu, que me valeria uma semana de reflexões. Uma linha escrita por um mendigo, mas que poderia superar a de muitos que têm formação universitária. Eu poderia até me sentir pequena ao me defrontar com a verdade, com a profundidade da frase.
E a ansiedade aumentava, meus olhos curiosos se aproximavam da folha na qual ele escrevia. E finalmente, com um pouco de meu esforço míope pude ver o inesperado: ele não escrevia! Em vez disso, encontrei desenhos, desenhos simples iam ocupando toda a extensão da folha, preenchendo todo espaço vazio. A simplicidade deles me admirou ao contrastar com a complexidade aparente que eu esperava... eram corações. E o olhar do mendigo era doce e feliz.





                                        Mariana Penna, 2003

7 comentários:

  1. Que lindo!!! Aguçando minha curiosidade! Lúdico!

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    1. Que bom que você curtiu Lydia! Além do mais pelo elogio vir de uma especialista da área! hehehe! ;)

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  2. SENSACIONAL!
    MUITO BOM MESMO
    TODA EXUBERÂNCIA DE UM ANDARILHO NÃO CABE NA LINGUAGEM, SÓ NA ARTE!
    ME SENTI FORTE
    ME SENTI FELIZ!

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    1. Bom demais saber que você curtiu, espero conseguir manter o padrão nas próximas postagens! :)

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