quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Flor do Amor


No silêncio do cemitério, uma velha viúva chora por seu marido falecido há um mês. Em sua humilde sepultura, marcada por uma cruz e um epitáfio sobre pedra de mármore, ela coloca lentamente, com suas mãos trêmulas, uma simples flor, um cravo vermelho.

Passada uma semana, aquele simples cravo deitado em pedra tão abiótica, começa a murchar. Enroscando-se como que um caracol, ele vai se transformando em um feto. Um pequenino feto que se desenvolve sobre aquela pedra de mármore, naquele canto abandonado do cemitério.
Certo dia, o coveiro acorda cedo e como se pressentisse, decide vagar pelo cemitério. De repente, ouve gargalhadinhas infantis e quando assombrado vê um bebezinho, se pergunta se não seria alucinação. Com um pouco de temor, aproxima-se e encanta-se com o olhar do pequenino. Pega-o no colo admirado, e só então lembra de observar o sexo do bebê.

- Meu Deus! O que é isso?

A criança não tinha sexo, e o coveiro ainda incrédulo, imagina se não seria aquele, um anjo caído. O traz para seu lar e no dia seguinte promete levá-lo para um orfanato, mas a criança o cativara e ele decide criá-la. 

Durante a primeira infância, aquela criatura assexuada freqüenta a escola sem muitos problemas. O tempo foi passando e algumas poucas vezes, ouvia perguntas sobre qual seria o seu sexo. Respondia que poderia ser o que desejasse e não compreendia porque as outras crianças estranhavam o fato dela não ter sexo. Ili tinha olhos, ouvidos e membros perfeitos, como poderia então ser considerado um deficiente?

Pouco antes de completar o primário, a professora chamou-o para conversar:

- Meu amor, esse é o seu último ano primário, você está crescendo em breve será adolescente. Quando a gente cresce, precisa tomar certas decisões. No seu caso, você precisa optar por ser menino ou menina.
A partir de então, começou a perguntar sobre as diferenças entre os sexos a seu pai e avós. Inconformada, indagava:

- Mas pai, eles só são diferentes dessa forma porque os ensinaram a ser assim!

O pai ficava por vezes furioso com sua intransigência para com a escolha do sexo. Até que chegou a um ponto em que ele desistiu. Consciente de que tal criatura só poderia ser um anjo, leva-o ao padre, que maravilhado o encaminha ao catecismo.

Um mês antes da primeira comunhão, chega Ili ao padre:

- Não posso comungar. Gostei muito de Jesus, ele parecia realmente amar as pessoas, chegando até a contrariar valores sagrados para a época. Mas de qualquer forma, no geral, o seu Deus, principalmente no Antigo Testamento, é orgulhoso e vingativo. Além disso, em toda a Bíblia prega-se a superioridade do homem sobre a mulher. E também não compreendo esse tipo de amor que seu Deus diz ter pelos homens, o qual os obriga a entregarem-se a ele, adorando-o e vivendo para o reverenciar. Para mim isso é egocentrismo e egoísmo, não é amor.

Anjo, portanto, Ili não era, mas sua ternura anulava a possibilidade de ser um demônio. E a questão do sexo continuava sem ser resolvida.

Crescia então, diferente dos demais e por isso mesmo começou a sentir a repulsa de seus colegas. Afinal Ili não podia entrar no grupo das meninas, nem dos meninos. 

Foi quando Ili decidiu omitir seu assexualismo. A partir de então, tudo começou a dar certo. Para as garotas, Ili era uma delas, para os garotos, um deles.

Apesar de muito sensível e amoroso, tinha uma personalidade forte e era contestadora, não conseguindo se calar perante uma injustiça. De inteligência acima do normal, tinha uma visão sobre o mundo mais ampla que a maioria. Não suportava a discriminação e odiava ver as pessoas subjugadas. Essas características fizeram com que atraísse muitas pessoas, que gostavam de estar em sua presença.

Era um andrógino perfeito, não tendendo para um lado nem para o outro. E como desfrutava de grande beleza física e de um encanto sobrenatural, atraía os olhares de muitos. Isto era recíproco porque Ili se apaixonava a cada dia mais e mais pelas pessoas que cruzava. Via beleza em todos e a todos queria conhecer e amar.

Fez muitos amigos e com eles sentia-se completa, amava-os profundamente e assim como naqueles momentos em que estavam juntos, queria ser feliz ao lado deles para sempre.

Já estava com quatorze anos quando deu seu primeiro beijo. Beijou um garoto a quem muito amava. No entanto descobriu que era amada de forma diferente. O garoto dizia ser seu namorado e a queria só para ele. Mas ili o amava como a seus outros amigos e o beijara porque ele assim o desejou.

- Eu lhe amo, mas não entendo como pode me amar desta forma obsessiva. Não entendo porque diz que por amor a você não posso beijar outras pessoas e não aceito a ideia de que devo lhe amar acima de meus amigos, simplesmente por lhe beijar e a eles não.

 Inconsolável, o garoto foi embora com os olhos rasos d’água. Ili sentiu remorsos por isso e desde então não quis beijar mais ninguém.
No entanto, passado algum tempo, uma garota se apaixonou por Ili e disse querer entregar seu corpo e sua alma a ele. Retrucou dizendo-a que amasse a ele e ao mundo, pois ela seria bem mais feliz se não se restringisse a amar uma só pessoa. Foi respondido com um tapa e um:

- Safado, nojento, tá me chamando de piranha?

Outras experiências como estas sucederam, mas de qualquer forma Ili tinha a seus amigos os quais amava e era amada. Eles eram para Ili a materialização da felicidade e suas palavras tocavam sua alma tão profundamente que a cada dia se sentia por eles mais apaixonado.

Compartilhavam idéias, roupas, sonhos, biscoitos, receios, abraços e por vezes até beijos descompromissados. Em sua mente, nada no mundo podia os afastar. 

Mas aconteceu o inexplicável, apesar de tanto amor compartilhado, um a um, seus amigos foram amando mais a uma pessoa exclusivamente. Aquele sentimento que antes era igual para todos e tinha valor máximo, era agora secundário.

Agora, eles começaram a sair mais vezes com uma pessoa apenas e contavam a todos como amavam aquele ser acima de qualquer outro. E aquilo parecia muito normal para a maioria das pessoas, mas para Ili não era.

Sua felicidade plena fora quebrada, não conseguia entender como o simples fato de ter relações sexuais com uma pessoa faria dela tão superior com relação às outras a ponto da primeira estar no topo da hierarquia sentimental. Era impensável para Ili um casal morar junto, viver uma para o outro, abandonando quase que completamente o resto do mundo. 

Sentia-se dia após dia mais abandonado. As ligações eram cada vez menos freqüentes, assim como os passeios, tendo ainda o desprazer de ocasionalmente ver casais de seus amigos passarem por Ili caminhando só pela cidade.

Estava agora sozinha, deixado para trás. E foi então que decidiu se recolher em seu quarto. Deitada em sua cama refletiu sobre a possibilidade de ser como os outros e por mais que tentasse aceitá-la, amava demais para isso. Amava tanto que preferiu desistir da vida a ver seu amor não ser correspondido. Queria todos de forma igualmente intensa, mas acabou sem nada.

E então adormeceu, e pouco a pouco seu corpo foi encolhendo, contorcendo, até que dentre aquele lençol amarrotado, restasse apenas uma semente.


                                                                                                                                              Mariana Penna, 2003

              
                    

2 comentários:

  1. GOSTEI MUITO!
    ME FEZ PENSAR SOBRE ISSO, INCLUSIVE É UM ASSUNTO DO QUAL VENHO PENSANDO FAZ TEMPO!
    ANARCO AMOR...
    VOU REFLETIR MAIS, POIS NÃO DOMINO MUITO O ASSUNTO!
    PARABÉNS!

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    1. Valeu Marcello! Quando eu escrevi essa história eu não tinha nenhuma leitura sobre amor livre, poliamor, nada disso. Essa crítica ao ideal do amor romântico foi algo bem instintivo, fruto da experiência mesmo.

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