quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Sorria


- “(...) Sorria, sempre sorria! Os clientes não têm nada a ver com seus problemas em casa, eles não têm culpa se o seu cachorro morreu, se seu marido acordou de mau humor. Eles estão em busca de um bom atendimento e é isso que vocês irão ofertar a eles. Não importa o que aconteceu antes de você chegar ao trabalho, não importa se seu filho tirou nota vermelha na escola ou se seu marido bebeu demais na noite anterior. Assim que vocês cruzarem aquela porta, vocês vivem um universo paralelo e nesse universo não há problemas. Aqui vocês são a solução, são pessoas mais evoluídas, nada afeta sua missão de prestar o melhor atendimento. E é esse atendimento que vai garantir o crescimento e a realização profissional de vocês. E vocês irão perceber que, no fundo, esta realização trará tanta satisfação que efetivamente nenhum dos problemas no mundo lá fora importam mais quando vocês estão aqui dentro. Só depende de vocês, só depende de cada um de nós garantir que esta continue a ser uma empresa de excelência da qual iremos sempre nos orgulhar.”
Enfim nosso querido gerente terminou seu discurso motivacional. À sua fala seguiram-se vários sorrisos motivados, principalmente os das meninas recém ingressas. Eu também sorri, aquele sorriso muito espontâneo e sincero de uma comissária de bordo ao final da sua discreta jornada de mais 15 horas consecutivas. Não, eu não trabalhei 15 horas consecutivas naquela loja, foi apenas uma comparação irônica. Em verdade, eu reclamo, mas muitas vendedoras queriam estar no meu lugar. Talvez eu seja simplesmente chata. Ou talvez essa merda de discursinho motivacional realmente seja uma babaquice que funciona com pessoas que pouco refletem. O resultado é bom, as pessoas se engajam. É inegável que um ambiente de trabalho em que todo mundo faz a linha comissária de bordo é mais agradável que um ambiente em que se está cagando pra regras básicas de educação e cortesia no atendimento. É bom pros clientes e também é bom pra gente. Mas ainda assim, me enerva esse discurso. Antigamente chamavam trabalhador de funcionário, agora chamam a gente de colaboradores. É essa porra de sentimento de pertencimento que meu gerente ajuda a criar quando nos quer orgulhosas por esquecermos a vida lá fora. Vida e trabalho se tornam diferentes universos. Isso me lembra o que uma vez aprendi de uma professora de história: que antes da sociedade industrial a vida e o trabalho se misturavam, as pessoas trabalhavam em casa, faziam festa enquanto realizavam a colheita, não havia separação. Até que o trabalho virou outro mundo, um mundo desagradável que nos tira de onde queríamos estar. Mas meu gerente não aceita, quer que achemos ele um universo paralelo e quiçá melhor. Na verdade, não é só meu gerente. Outro dia sei lá porque diabos vi um vídeo no youtube falando sobre a criação de um novo celular da samsumg. Mostrava como os funcionários, ops, colaboradores, se isolavam em seu universo paralelo e desfrutavam de vários prazeres para ter ideias geniais e pensar o design do aparelho.
É, eu devo ser realmente muito ranzinza reclamando que os colaboradores não são mais tratados como os funcionários que ouviam grosserias e trabalhavam tão somente a base de pressão e ameaças. Não nego que essa configuração atual seja melhor, ainda que também me pareça ser uma situação de exceção a de “colaboradoras” como eu. Não consigo imaginar a equipe de limpeza da empresa terceirizada que cuida da loja onde eu trabalho ouvindo palestrinhas de psicologia positiva a cada dois meses como fazem conosco. Ah, vocês têm que ver a carinha de satisfação de algumas das minhas colegas depois dessas palestras. Umas parecem que acabaram de ter aquele orgasmo homérico que a gente só conhece no início dos relacionamentos, quando o cara ainda quer te agradar. Outras se emocionam como se tivessem acabado de assistir a morte do Mufasa. Eu acho patético, sempre patético. Como a cara do meu gerente e seu bom humor oco. Mas ainda assim, eu sorrio, claro. Ele me adora, fica muito evidente isso. É como com meus clientes, eu sou muito agradável. Falo sempre o que eles querem ouvir, e, principalmente, eu ouço muito. Ah, como eu ouço! Contam-me as coisas mais fatigantes e eu escuto, interajo. Modéstia à parte, minha retórica é foda. E isso eu não aprendi na faculdade, sempre foi assim, parece instinto. Ah, e sobre eu trabalhar de vendedora tendo uma graduação, não sou nenhuma exceção na verdade. Até me acho excepcional, mas por outros motivos. Só uma pessoa muito arrogante ficaria falando mal de todo mundo assim, não é? E, aproveitando o ensejo, vou falar mal da minha universidade e do meu curso. Eu fiz marketing achando que ficaria rica. Aqui estou, ganhando mais que muita gente, mas longe de ser uma colaboradora da Google. De nada me serviu aquela merda caça níquel, só pra criar dívida com FIES.
Mas o que importa é que eu sinto raiva, raiva dessa porra desse meu sorriso, raiva dessa porra dessa minha retórica bem construída visando convencer e agradar os outros. Que meu gerente nunca saiba disso. Tampouco que o saiba o meu namorado, aquele corno! Na verdade, ele nem é corno e isso me dá ainda mais ódio. Quase seis anos que estamos juntos e ele deitado em berço esplêndido. Eu sempre me esforçando para ser agradável, prever e realizar suas vontades, ser sua sempre atenta comissária de bordo. E ele sequer me faz uma surpresa no meu aniversário, nem mesmo esboça a menor intenção de morarmos juntos. Seis anos! Minha melhor amiga costumava dizer que os homens quando sentem que já concluíram a conquista se acomodam e xoxam a relação. Ela dizia que por isso a gente não podia dar mole, tinha que marcar em cima, cobrar. Mas eu nunca fiz isso, provavelmente por medo de perdê-lo, assim como não confrontaria meu gerente.
Essa cortesia forçada está realmente me dando nos nervos. Parece que me sinto em dívida com ela em tudo na minha vida e talvez por isso não consiga romper. Mas ao mesmo tempo é como eu tivesse um enorme desejo de ser rude, de xingar, de jogar na cara do meu namorado as meias sujas que ele espalha pela casa, falar pro meu gerente que ele é um medíocre que só chegou onde está por ser capacho e bem relacionado. Mas eu não extravaso nada disso. Talvez nos sonhos. Noite passada sonhei que eu espancava uma garota que fazia uma grosseria comigo. Tão sintomático. Talvez eu devesse espancar alguém na vida real pra dar vazão a isso. Brincadeira, eu não serei assim. Ou serei? Mas foi só pensar nisso que me veio à cabeça meu sogro. Se tem alguém que pede pra apanhar é meu sogro e ainda assim eu sou um docinho de coco com ele. Não bastasse a pergunta sem noção sempre direcionada a mim sobre quando daremos a ele netos, o inadequado faz constantemente comentários pejorativos sobre minha aparência e características físicas alertando que se eu não cuidar poderei perder o filho dele. Sério, parece inacreditável, mas ele já reclamou do meu salto, dizendo que homem não gosta de mulher muito alta, já falou que preciso malhar meu braço pois está muito gordo e flácido e como mulher envelhece mais cedo que homem tem que se cuidar mais. Sempre isso, me cuidar, cuidar dos outros. Sorrir. E é isso que eu faço quando ouço as grosserias do meu sogro: sorrio. É que nem como toda vez que meu namorado está lá em casa e vai embora sem sequer tirar o próprio prato da mesa...
- Cleide, desculpa te interromper. Mas já passou um pouco do nosso horário. Eu fico contente que você esteja cada vez mais consciente do que está gerando esta raiva constante em você. Vejo um grande progresso nesses meses de terapia. Só o fato de você admitir essa raiva, reconhecer esse seu demônio já é um passo incrível para o avanço. Te espero semana que vem no mesmo horário, certo?
- Certo, doutora. Muito obrigada.
Cumprimentaram-se com um abraço contido e dois beijinhos, despedindo-se a seguir com um sorriso e um aceno de cabeça cortês.
Mariana Penna, 2019.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

A menina que via a morte


Era uma menina que via a Morte. Quando pequena ela não sabia bem o que era aquilo, mas a Morte vivia passeando ao seu redor. Viu o espectro se aproximar dos bichos e depois percebeu que eles morriam. Viu rotineiramente ela se aproximar de sua avó que parecia respirar mais cansada toda vez que tal figura etérea dela se aproximava. A idosa ia ficando mais fraca até o derradeiro dia em que a menina viu a morte lhe sugar todas as forças. Sua avó faleceu. A conexão era lógica e a partir de então a menina passou a temer aquele monstro azul desesperadamente, como no pior pesadelo. Sim, a morte é azul e não preta como nos filmes. É azul como o céu em sua imensidão e que se reflete no mar. E assim como o azul se faz o tempo todo presente, também se fazia onipresente a morte na vida da menina, que passou a gritar em desespero toda vez que a via. E o pior é que assim como fazia com todos os seres, a Morte também vinha de tempos em tempos lhe sugar, sugava um pouquinho e ia embora. Não adiantavam seus protestos, a morte era a mais blasé das criaturas. Estapear-lhe era vão, a morte perpassava sem obstáculos todas as matérias e nelas todas dava, invariavelmente, a sua desagradável sugadinha, puxando para seu corpo etéreo azul o ar vermelho que exalava dos seres vivos.
Era vermelha a substância que ela sugava. Com o passar do tempo, a menina passou a associar o vermelho à vida, afinal era a vida que pouco a pouco a morte engolia, sem pedir permissão, nem licença. Conforme ela crescia, parecia fazer mais e mais sentido pensar a vida como o vermelho. Pensava no sangue, sempre em movimento em nossas veias e artérias, no fogo, no sol. Sim, a vida é vermelha. Já a Morte é azul. “Por que azul?”, encucava a menina. Só pensava no azul como inalcançável. Tal como o céu era também a Morte que não se podia tocar, nem estapear, ou mesmo controlar, só observar.
Mas antes que aprendesse ou aceitasse essa possibilidade, sua ira contra a intocável lhe gerou alguns problemas: se fosse rica, seus pais lhe mandariam para um terapeuta infantil, como não o era, sua mãe lhe levou para diferentes centros espirituais e igrejas para tentar lhe tirar os maus espíritos. Nada funcionou, mas com o tempo ela aprendeu que era melhor disfarçar para ser considerada uma pessoa normal. Tampouco tentar agarrar a Morte pela gola e dar-lhe algumas boas porradas se mostrava eficiente. Gritar e desesperar, tentar fugir, em nada dissuadiriam a Morte em sua constante e tediosa missão.
A menina já era uma adolescente e nessa nova fase da vida buscou também atualizar sua relação com a Morte. Se fugir ou enfrentar não eram mais opções, como poderia ela driblar o monstro? Era preciso entendê-la, mas que sentido havia na existência de algo que só faz sugar o vermelho da vida? Às vezes numa pequena proporção, como uma brisa, às vezes de uma forma tão violenta que parecia engolir um ciclone rubro, como era o caso das mortes repentinas.
Queria saber o que mais a Morte fazia além disso. Por isso, se ninguém estava olhando, começava a seguir a Morte. Porém, observou que, depois de cumprir sua missão, a monstrenga rapidamente se deslocava para outro lugar que não podia acompanhar, até aparecer novamente.
Desistiu de seguir a Morte, mas não de tentar entender um pouco aquela criatura que tanta dor deixava em seu caminho sem nunca expressar qualquer sentimento, qualquer empatia por aqueles que lesionava. A Morte era fria (talvez por isso azul), insensível. Fria como o homem que faz a guerra e mata outros homens desconhecidos por motivos grande parte das vezes também desconhecidos ou tão pouco refletidos que só com base em muita frieza podem ser considerados motivos.
E o frio é azul, pensava ela. Nos desenhos, nos filmes, o inverno é quase sempre caracterizado em azul. Vai ver por isso que os meninos são acostumados a gostar de azul: para serem aqueles homens frios que fazem as guerras, que amordaçam sentimentos, e não choram. Frios como a Morte que gera dor sem esboçar qualquer sentimento. Vai ver por isso que os meninos desde cedo ganham de brinquedos armas, carros de polícia, bonecos de soldados. Adestrados como soldados da Morte lhes são estimuladas brincadeiras violentas e a brutalidade forçada como pré-requisito para serem reconhecidos como seres dignos de vestir azul. Como se a Morte precisasse recrutar guerreiros, seu trabalho “natural” já é bastante eficiente.
Se é para lutar, pensava a menina, melhor lutar pela vida. Nesse sentido a educação das meninas parece melhor: brincar de gerar vida e cuidar das pessoas, limpar, cozinhar, arrumar e todas essas coisas dignas e lindas que deveriam ser atribuições de todos os seres humanos, mas que são vistas como vergonhosas para os meninos. Deve ser por isso que às meninas estimulassem usar o rosa. Rosa é vermelho, vermelho e branco.
Mas nem sempre a menina gostou de ser menina, lembrava-se. Essas atividades dignas e lindas, fundamentais à vida são também trabalhosas, e tantas vezes sua mãe lhe exigia que a ajudasse a cozinhar, lavar e passar enquanto seus irmãos homens jogavam e se divertiam livremente. É, ser um soldado da Morte pode trazer alguns benefícios.
Mas pensar em unir forças com a sua arqui-inimiga? Jamais! Lutaria sempre pela vida. Foi assim que meio por um acaso ouviu falar sobre e passou a ficar obcecada pela Cruz Vermelha. Pesquisou na internet e apaixonou-se pela instituição internacional cuja missão central é a de proteger vidas humanas da Morte. Aos 18 anos iniciou um curso de enfermagem, visando um dia ingressar na tão amada organização. Seria assim que confrontaria aquela que lhe rendeu tantos traumas. Aos 21 se questionava se conseguiria alcançar seu grande sonho. Tímida, de família pobre e sem contatos, era difícil acessar aquele universo. Mas ainda que mantivesse o sonho no horizonte, a paixão havia abrandado. A Enfermagem lhe rendeu muitas satisfações como compensação. Lado a lado de colegas aguerridos na luta pela vida, viu que nem todos os homens eram azuis, havia homens vermelhos. Pesquisando fascinada pela Cruz Vermelha descobriu também que seu fundador foi um homem, mais exatamente o suíço Jean Henri Dunant. Que bom seria se todos fossem assim, pensava ela enquanto voltava exausta do estágio. Mas em sua casa, só tinha por exemplo mulheres. Eram elas que estavam constantemente preocupadas com os outros, especialmente sua mãe e sua avó. Antes de pensarem em si próprias, cuidavam da família, vizinhos e ocasionalmente até de desconhecidos em necessidade. Coisa que nunca viu nos homens de seu parentesco, visivelmente preocupados consigo mesmos: seus trabalhos, seus lazeres, suas propriedades. Na escola, as professoras tinham calma e davam carinho, o inspetor era ríspido e agressivo. Em certo momento passou a achar que era da natureza dos homens todos serem azuis. A faculdade lhe fez ver que rupturas são possíveis.
Pensando nessas coisas, chegou em casa. Era noite, mas não havia ninguém. Era hora de culto. Foi esquentar a comida que sua mãe lhe havia deixado preparada. De repente, assustou-se, a Morte vinha fazer visita. Já deveria ter se acostumado, mas o cansaço baixou-lhe a guarda. Ela veio em sua direção de uma maneira inusitada. Posicionou-se bem a sua frente, como se a mirasse diretamente, mesmo sem olhos possuir. E disse: “A Morte está em todos vocês. Não há como me escapar, pois sou irmã do Tempo e da Tragédia, mas nunca pedimos que ninguém trabalhe para nós”. Assustada, tremeu todo o corpo, mas ficou estática, catatônica. O espectro pegou sua mão e furou-lhe o dedo indicador. Com sua mão etérea, mas que agora, pela primeira vez a menina podia sentir, a morte tocou o sangue que se tornou roxo. E desapareceu em seguida.
Como foi difícil dormir aquela noite. Praticamente impossível. O pior era não poder dividir a angústia com ninguém. Estava sozinha. De manhã cedo levantou-se exausta, mas precisava ir para a faculdade. Sua mãe deixava a televisão ligada e o telejornal da manhã noticiava uma grande manifestação. Várias mulheres e alguns homens protestavam contra um candidato violento e militarista. A menina não entendia muito de política, mas lhe chamou a atenção especialmente a cor das camisas e bandeiras que carregavam.

Mariana Penna, 2014/2016/2019.