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Sorria, sempre sorria! Os clientes não têm nada a ver com seus problemas em
casa, eles não têm culpa se o seu cachorro morreu, se seu marido acordou de mau
humor. Eles estão em busca de um bom atendimento e é isso que vocês irão
ofertar a eles. Não importa o que aconteceu antes de você chegar ao trabalho,
não importa se seu filho tirou nota vermelha na escola ou se seu marido bebeu
demais na noite anterior. Assim que vocês cruzarem aquela porta, vocês vivem um
universo paralelo e nesse universo não há problemas. Aqui vocês são a solução,
são pessoas mais evoluídas, nada afeta sua missão de prestar o melhor
atendimento. E é esse atendimento que vai garantir o crescimento e a realização
profissional de vocês. E vocês irão perceber que, no fundo, esta realização trará
tanta satisfação que efetivamente nenhum dos problemas no mundo lá fora importam
mais quando vocês estão aqui dentro. Só depende de vocês, só depende de cada um
de nós garantir que esta continue a ser uma empresa de excelência da qual
iremos sempre nos orgulhar.”
Enfim
nosso querido gerente terminou seu discurso motivacional. À sua fala
seguiram-se vários sorrisos motivados, principalmente os das meninas recém
ingressas. Eu também sorri, aquele sorriso muito espontâneo e sincero de uma
comissária de bordo ao final da sua discreta jornada de mais 15 horas
consecutivas. Não, eu não trabalhei 15 horas consecutivas naquela loja, foi
apenas uma comparação irônica. Em verdade, eu reclamo, mas muitas vendedoras
queriam estar no meu lugar. Talvez eu seja simplesmente chata. Ou talvez essa
merda de discursinho motivacional realmente seja uma babaquice que funciona com
pessoas que pouco refletem. O resultado é bom, as pessoas se engajam. É
inegável que um ambiente de trabalho em que todo mundo faz a linha comissária
de bordo é mais agradável que um ambiente em que se está cagando pra regras básicas
de educação e cortesia no atendimento. É bom pros clientes e também é bom pra
gente. Mas ainda assim, me enerva esse discurso. Antigamente chamavam
trabalhador de funcionário, agora chamam a gente de colaboradores. É essa porra
de sentimento de pertencimento que meu gerente ajuda a criar quando nos quer
orgulhosas por esquecermos a vida lá fora. Vida e trabalho se tornam diferentes
universos. Isso me lembra o que uma vez aprendi de uma professora de história: que
antes da sociedade industrial a vida e o trabalho se misturavam, as pessoas
trabalhavam em casa, faziam festa enquanto realizavam a colheita, não havia separação.
Até que o trabalho virou outro mundo, um mundo desagradável que nos tira de
onde queríamos estar. Mas meu gerente não aceita, quer que achemos ele um
universo paralelo e quiçá melhor. Na verdade, não é só meu gerente. Outro dia sei
lá porque diabos vi um vídeo no youtube falando sobre a criação de um novo
celular da samsumg. Mostrava como os funcionários, ops, colaboradores, se
isolavam em seu universo paralelo e desfrutavam de vários prazeres para ter
ideias geniais e pensar o design do aparelho.
É,
eu devo ser realmente muito ranzinza reclamando que os colaboradores não são
mais tratados como os funcionários que ouviam grosserias e trabalhavam tão
somente a base de pressão e ameaças. Não nego que essa configuração atual seja
melhor, ainda que também me pareça ser uma situação de exceção a de “colaboradoras”
como eu. Não consigo imaginar a equipe de limpeza da empresa terceirizada que
cuida da loja onde eu trabalho ouvindo palestrinhas de psicologia positiva a
cada dois meses como fazem conosco. Ah, vocês têm que ver a carinha de
satisfação de algumas das minhas colegas depois dessas palestras. Umas parecem
que acabaram de ter aquele orgasmo homérico que a gente só conhece no início
dos relacionamentos, quando o cara ainda quer te agradar. Outras se emocionam
como se tivessem acabado de assistir a morte do Mufasa. Eu acho patético,
sempre patético. Como a cara do meu gerente e seu bom humor oco. Mas ainda
assim, eu sorrio, claro. Ele me adora, fica muito evidente isso. É como com meus
clientes, eu sou muito agradável. Falo sempre o que eles querem ouvir, e,
principalmente, eu ouço muito. Ah, como eu ouço! Contam-me as coisas mais fatigantes
e eu escuto, interajo. Modéstia à parte, minha retórica é foda. E isso eu não
aprendi na faculdade, sempre foi assim, parece instinto. Ah, e sobre eu
trabalhar de vendedora tendo uma graduação, não sou nenhuma exceção na verdade.
Até me acho excepcional, mas por outros motivos. Só uma pessoa muito arrogante ficaria
falando mal de todo mundo assim, não é? E, aproveitando o ensejo, vou falar mal
da minha universidade e do meu curso. Eu fiz marketing achando que ficaria
rica. Aqui estou, ganhando mais que muita gente, mas longe de ser uma
colaboradora da Google. De nada me serviu aquela merda caça níquel, só pra
criar dívida com FIES.
Mas
o que importa é que eu sinto raiva, raiva dessa porra desse meu sorriso, raiva
dessa porra dessa minha retórica bem construída visando convencer e agradar os
outros. Que meu gerente nunca saiba disso. Tampouco que o saiba o meu namorado,
aquele corno! Na verdade, ele nem é corno e isso me dá ainda mais ódio. Quase
seis anos que estamos juntos e ele deitado em berço esplêndido. Eu sempre me
esforçando para ser agradável, prever e realizar suas vontades, ser sua sempre
atenta comissária de bordo. E ele sequer me faz uma surpresa no meu aniversário,
nem mesmo esboça a menor intenção de morarmos juntos. Seis anos! Minha melhor amiga
costumava dizer que os homens quando sentem que já concluíram a conquista se
acomodam e xoxam a relação. Ela dizia que por isso a gente não podia dar mole,
tinha que marcar em cima, cobrar. Mas eu nunca fiz isso, provavelmente por medo
de perdê-lo, assim como não confrontaria meu gerente.
Essa
cortesia forçada está realmente me dando nos nervos. Parece que me sinto em
dívida com ela em tudo na minha vida e talvez por isso não consiga romper. Mas ao
mesmo tempo é como eu tivesse um enorme desejo de ser rude, de xingar, de jogar
na cara do meu namorado as meias sujas que ele espalha pela casa, falar pro meu
gerente que ele é um medíocre que só chegou onde está por ser capacho e bem
relacionado. Mas eu não extravaso nada disso. Talvez nos sonhos. Noite passada
sonhei que eu espancava uma garota que fazia uma grosseria comigo. Tão sintomático.
Talvez eu devesse espancar alguém na vida real pra dar vazão a isso.
Brincadeira, eu não serei assim. Ou serei? Mas foi só pensar nisso que me veio
à cabeça meu sogro. Se tem alguém que pede pra apanhar é meu sogro e ainda
assim eu sou um docinho de coco com ele. Não bastasse a pergunta sem noção
sempre direcionada a mim sobre quando daremos a ele netos, o inadequado faz
constantemente comentários pejorativos sobre minha aparência e características
físicas alertando que se eu não cuidar poderei perder o filho dele. Sério,
parece inacreditável, mas ele já reclamou do meu salto, dizendo que homem não
gosta de mulher muito alta, já falou que preciso malhar meu braço pois está
muito gordo e flácido e como mulher envelhece mais cedo que homem tem que se
cuidar mais. Sempre isso, me cuidar, cuidar dos outros. Sorrir. E é isso que eu
faço quando ouço as grosserias do meu sogro: sorrio. É que nem como toda vez
que meu namorado está lá em casa e vai embora sem sequer tirar o próprio prato
da mesa...
-
Cleide, desculpa te interromper. Mas já passou um pouco do nosso horário. Eu
fico contente que você esteja cada vez mais consciente do que está gerando esta
raiva constante em você. Vejo um grande progresso nesses meses de terapia. Só o
fato de você admitir essa raiva, reconhecer esse seu demônio já é um passo incrível
para o avanço. Te espero semana que vem no mesmo horário, certo?
-
Certo, doutora. Muito obrigada.
Cumprimentaram-se
com um abraço contido e dois beijinhos, despedindo-se a seguir com um sorriso e
um aceno de cabeça cortês.
Mariana Penna, 2019.