Setembro de 2013: Há cerca de 6
meses uma centena de famílias sem casa própria ocupava um terreno abandonado
por uma empresa na grande BH, em Contagem.
Setembro de 2013: um grupo
heterogêneo de apoiadores locais organizou um encontro e convocou vários grupos
para participarem, alguns de outros estados inclusive, a fim de ampliar as
bases de solidariedade para com aquela luta por moradia.
Educação libertária, luta
antiprisional, anarquismo social, feminismo, ecologia, dentre outros temas,
constavam da grade do encontro. Além disso, mesmo excluído do cartaz do evento,
estava programado também um culto religioso. “Um culto?”, questionavam os
convidados aos organizadores do evento, que apoiavam a ocupação sem, contudo,
serem moradores. “É, um culto, mas ninguém precisa ir, é uma coisa mais deles”
– respondiam referindo-se aos moradores da ocupação. E acrescentavam dizendo
ser possível até aproveitar o horário do culto para discutir articulação
política entre as organizações e movimentos presentes.
- Mas tem certeza que não vai
ficar feio se a gente não for? – perguntou uma militante vinda da Bahia.
- Não – respondeu o apoiador –
eu pessoalmente nem me sentiria bem, pareceria hipócrita da minha parte, afinal
sou ateu, como um monte de gente aqui.
Com isso, o impasse parecia
resolvido, ao menos para os militantes. Já o pastor e moradores envolvidos na
organização do culto, contavam ainda com a presença dos visitantes. Em verdade,
aquele culto havia sido pensado justamente para recebê-los. Mas os anfitriões
teriam esperado sozinhos e em vão, não fosse uma eventualidade nada agradável
ter abalado a relação entre os moradores e aqueles forasteiros em tempo
recorde. Um grupo, que se considera uma espécie de vanguarda artística radical,
colocava em prática seu “pornoterrorismo”, performances sexuais extravagantes,
escatológicas e muitas vezes violentas, realizadas mesmo à luz do dia e em
qualquer lugar da ocupação, aos olhos de quem circulasse no meio.
A tensão era evidente,
moradores reclamavam, sentiam-se afrontados, e muitos militantes arrancavam os
cabelos sem saber o que fazer para controlar os “radicais estéticos”, ou ao
menos para evitar serem confundidos com eles. O pastor reforçou o convite para
o culto. Dado o contexto, quando este não estava mais presente, o assunto
voltou a circular nas conversas daquela gente que desejava mudar o mundo:
- Vamos para o culto! É o
mínimo que podemos fazer nessa situação para aliviar um clima tão pesado e
amenizar o desconforto que essa galera provocou aos moradores! - insistia a
militante da Bahia.
- Também acho! – concordou um
militante de SP, quem, seguido por companheiras e companheiros de MG, RJ e SC,
passou a discutir os termos dessa participação. Em decorrência, ficou claro que
ninguém precisaria simular crença, orar, rezar, nada disso, apenas estariam
presentes em respeito aos moradores.
Era a hora do culto, foram
todos para a praça construída pelos ocupantes. O pastor e várias senhoras
organizavam os bancos improvisados para receber os visitantes, que aos poucos
iam se acomodando em formato de meia lua.
Todos sentados, o pastor começa
seu sermão:
- Queridos amigos, irmãs,
irmãos e convidados de vários lugares do Brasil, eu gostaria de começar esse
culto fazendo a vocês a seguinte pergunta: quem aqui acredita em Deus?
Todos os moradores ali
presentes levantaram as mãos, dentre os militantes, a maioria com as mãos
abaixadas. Estes últimos olhavam entre si, desconfortáveis. Alguns,
internamente, se questionavam pensando que merda estavam fazendo ali. Outros olhavam
para baixo, sem saber se permaneciam ou iam embora por medo do que mais poderia
vir daquele culto para o qual vieram um tanto a contragosto. Em suma, o
desconforto era geral entre os militantes, mas esta tortura durou poucos
segundos, e o pastor continuou:
- E, agora, eu queria perguntar
a vocês outra coisa: quem aqui acredita no amor, na força do amor para mudar as
coisas?
De imediato, todas as mãos se
levantaram. Houve uma quebra da ordem anterior e, assim, moradores e militantes
agora se viam e se confraternizavam institivamente com alguns olhares
simpáticos e sorrisos, ainda discretos. O pastor continuou, mirando
especialmente os visitantes:
- Pois bem, meus amigos, o que
vocês chamam de amor, eu chamo de Deus, de Jesus Cristo. Sendo assim, nós todos
acreditamos na mesma coisa, nós todos estamos unidos numa mesma luta para mudar
o mundo, para mudar a realidade injusta. Meu Deus disse que só há dois
mandamentos: amar a Deus, que como eu disse, para mim é o amor, e amar ao
próximo como a si mesmo. Por isso, meu Deus não quer o ódio, a intolerância,
ele quer a união, o respeito, o amor. E a religião em seu sentido original é
isso, é religar. Religar as pessoas a Deus, ao amor, e assim religar as pessoas
entre si. Por isso, irmãs, irmãos, companheiras, companheiros, eu convido a
todos vocês para a comunhão.
Nesse momento, algumas senhoras
se levantaram e, seguidas pelos olhos curiosos dos convidados, foram e voltaram
carregadas de bandejas e cestas com frutas e pães. Enquanto elas traziam
alimentos, o pastor dava prosseguimento ao culto:
-Vamos agora comungar, ou seja,
dividir, colocar em comum esses alimentos, esses frutos da nossa terra, esses
frutos do trabalho humano. E aproveito, nesse momento, para lembrar que tanto
cristãos como os companheiros da militância comungamos, cada um a sua maneira.
É só lembrar o significado da palavra companheiro que vocês usam para chamar
uns aos outros, não é? – perguntava enquanto lhe sorriam alguns companheiros de
militância – Companheiro é aquele com quem a gente divide o pão. Assim sendo,
convido a todos para comungar como irmãos e compartilhar como companheiros.
Inflamados de alegria,
cristãos, socialistas libertários ou estatistas, todos sorriam, se
cumprimentavam e comiam o que as moradoras lhes ofertavam. O tensionamento se foi. Ali, eram uma
comunidade. Os militantes sequer se incomodaram quando indivíduos da “vanguarda
artística” passaram por eles com olhares jocosos, debochados. Já não importava,
estavam em paz; estavam unidos; estavam religados; estavam em religião, ateus,
agnósticos e cristãos.
*Baseado em fatos reais.
** Dedicado ao pastor Isaías da Ocupação Guarani Kaiowá.
Mariana Penna, 2015