domingo, 12 de abril de 2020

Colecionador



São muitos os comediantes famosos que sofrem de depressão. Alguns inclusive se suicidaram. O Cartola cantava “quem me vê sorrindo, pensa que sou alegre” e o Freud considerava que todo excesso implicava alguma falta. Mas o personagem da nossa história prefere não pensar muito sobre isso, afinal, todo mundo tem seus problemas, o seu passava certamente pelos excessos e pela impaciência para com tudo o que se repete, tudo que é da ordem do cotidiano. Mas talvez esse não seja de fato um grande problema, pensava ele. Será?
É fácil começar novos projetos, tudo que é inaugural é excitante, difícil é concluí-los. É tão gostoso aprender coisas novas, dá vontade de buscar cada vez mais. Porém, e a prática demonstrou, em pouco tempo tudo que no início parecia tão interessante se tornava trabalhoso, fatigante, repetitivo, enjoativo. O que era um desafio tornava-se limitador, ia encarcerando e conforme seu sentimento caminhava nessa direção, vinha ao mesmo tempo a vontade de navegar em outros mares. Ele era assim com os estudos, com os trabalhos, nada o prendia por muito tempo, precisava mudar ou se sentia enjaulado.
Não é de se surpreender que o mesmo ocorresse na vida afetiva. As relações com as mulheres rapidamente o cansavam. Para sua felicidade o acaso o fez um homem bonito nascido na era dos aplicativos de relacionamentos. Realmente a flexibilidade e a volatilidade daqueles meios pareciam encaixar-se como uma luva à sua personalidade nômade e irrequieta. É tão gostoso quando aparece uma mulher diferente e interessante e que esta lhe retribui a atenção, o que não era incomum. Um frenesi, uma excitação que move a vida lhe acompanham enquanto conhece esta pessoa incrível. Porém, não demora muito e isso passa ou ameniza. Mas logo a seguir há outra mulher ainda mais bonita, e outra ainda mais inteligente, outra certamente será mais divertida, outra deliciosamente mais fogosa, haverá outra mais misteriosa. Sempre há mais e ele sempre quer mais. Tem consciência disso e quer se convencer de que não faz para ostentar números, para pontuar e contar vantagem com os amigos. Sabe que não precisa disso, mas no fundo se compraz por viver toda esta intensidade e diversidade.
Por ter consciência disso e não querer ser má pessoa, é preciso ser honesto, é preciso não iludir. Nunca aprofundar a relação, evitar intimidade. Se necessário, deve pular fora antes que venham sentimentos da outra parte. Dormir junto de alguém? Jamais, muita proximidade gera efeitos indesejados. Se uma ficante se demonstra mais envolvida, é preciso se afastar, manter distância. O convívio desgasta as relações. No dia a dia os defeitos aparecem, os conflitos e as cobranças também. É bem melhor estar com as pessoas em seus melhores dias, quando elas estão com bom humor, quando elas efetivamente querem te encontrar, quando querer beber, rir, fazer um sexo gostoso contigo. Por outro lado, não é nada divertido ter que ouvir desabafos, pessoas reclamando da vida, pedindo conselhos para situações horrorosas em que elas mesmas se meteram, ou pior, quando te pedem alguma ajuda e te dão trabalho. Isso ele definitivamente queria evitar. Já era exaustivo demais cuidar de si próprio para ter que cuidar de outrem. Definitivamente, cuidar de outra pessoa não estava em seus planos de vida. Grande parte dos seus amigos estão casando, alguns tendo filhos. Os relatos dos problemas conjugais e familiares lhe soam como um pesadelo em vida.
No entanto, por contraditório que pareça, ao mesmo tempo que tem aversão a qualquer ideia de compromisso, quer ser lembrado, quer manter algum tipo de vínculo, quer ser marcante para as outras pessoas. Por isso some e reaparece de tempos em tempos. Parece ter sido o mecanismo que criou para não enjoar, não se sentir preso e ainda assim continuar a acumular, sem perder. Mais experiências, mais pessoas, nunca menos.  
De tempos em tempos, porém, se pergunta se há algo de errado com ele. Não parece ser viável viver esta intensidade pelo resto da vida. Mas logo depois chama um amigo para tomar uma cerveja, vai para uma boate ou marca um encontro pelo aplicativo, pois não lhe faltam contatinhos. A leve angústia vai embora até novamente lhe incomodar e ele acionar seus mecanismos para interromper a inquietação.
Hoje, porém, tudo está diferente. Ele está em quarentena. Um vírus mortal força pessoas de todo mundo a se trancarem em casa para escapar a uma possível e asfixiante morte. 2 em cada 8 habitantes contaminados precisará de hospitalização para sobreviver à pandemia. Parece estória de ficção científica, mas é real. O ano é 2020 e o vírus é o covid-19. Por essa, nosso personagem não esperava, quase ninguém esperava à exceção de alguns cientistas e outros ansiosos por um apocalipse.
O desejo mais instintivo de nosso personagem é o de furar a quarentena, continuar a sair, a beber e a diversificar sua vida sexual. Mesmo que o fizesse, porém, o mundo lá fora não é mais o mesmo. Não está mais disponível e lhe sorrindo como era de costume. Bares e casas de show estão fechados. Mesmo que muitos amigos queiram ignorar a quarentena, vários outros estão preocupados com seus parentes ou consigo mesmos. E é principalmente por estar absolutamente apegado à própria vida que nosso personagem resolveu se resignar ao mundo do cotidiano. Como parte do grupo de risco, precisava se proteger.
Trancado em casa, as horas parecem sempre iguais. Viver com seus pais até então era algo que não o incomodava em nada. Era muito confortável na verdade. Seus pais nunca lhe impuseram restrições ao uso do espaço, muito menos responsabilidades ou obrigações. Podia sair e voltar a hora que quisesse, comer em casa ou na rua sem precisar avisar a ninguém. Podia ainda trazer quem quisesse, sem nem precisar apresentar à família. Circulava livremente pelo lar sem quaisquer limitações. Mas agora era tudo diferente. O que era um porto seguro para reabastecer e dar continuidade às suas viagens aventureiras, tornou-se uma prisão horrendamente previsível. A leveza e a falta de rotina que caracterizavam seus dias, repentinamente cessaram de existir.
Tentava se ocupar. Cursos online, papo virtual com amigos, Tinder visando animar a vida quando tudo isso acabasse. Mas nada, absolutamente nada amenizada a ansiedade. Antes calmo, tornava-se agora irritadiço, descontava nos pais, no cachorro, nos gatos, na parede do seu quarto. Era como se sem a intensidade e a renovação constantes não lhe sobrasse nada a que se apegar e sentir prazer. O tudo de repente sumiu e agora parecia só haver falta. E esta falta o consumia. Começou a se incomodar com ela e a pensar sobre o que ela significava. Por que precisava tanto das agitações, da mudança, por que não consegue suportar a repetição, o tédio? Pensou em Freud, nos excessos que encobrem carências, mas não entendia o que lhe faltava. Esta noite, ele socou e quebrou o espelho de tanta raiva por não conseguir responder.

Mariana Penna, 2020