São
muitos os comediantes famosos que sofrem de depressão. Alguns inclusive se
suicidaram. O Cartola cantava “quem me vê sorrindo, pensa que sou alegre” e o
Freud considerava que todo excesso implicava alguma falta. Mas o personagem da
nossa história prefere não pensar muito sobre isso, afinal, todo mundo tem seus
problemas, o seu passava certamente pelos excessos e pela impaciência para com
tudo o que se repete, tudo que é da ordem do cotidiano. Mas talvez esse não
seja de fato um grande problema, pensava ele. Será?
É
fácil começar novos projetos, tudo que é inaugural é excitante, difícil é
concluí-los. É tão gostoso aprender coisas novas, dá vontade de buscar cada vez
mais. Porém, e a prática demonstrou, em pouco tempo tudo que no início parecia
tão interessante se tornava trabalhoso, fatigante, repetitivo, enjoativo. O que
era um desafio tornava-se limitador, ia encarcerando e conforme seu sentimento
caminhava nessa direção, vinha ao mesmo tempo a vontade de navegar em outros
mares. Ele era assim com os estudos, com os trabalhos, nada o prendia por muito
tempo, precisava mudar ou se sentia enjaulado.
Não
é de se surpreender que o mesmo ocorresse na vida afetiva. As relações com as
mulheres rapidamente o cansavam. Para sua felicidade o acaso o fez um homem
bonito nascido na era dos aplicativos de relacionamentos. Realmente a
flexibilidade e a volatilidade daqueles meios pareciam encaixar-se como uma
luva à sua personalidade nômade e irrequieta. É tão gostoso quando aparece uma
mulher diferente e interessante e que esta lhe retribui a atenção, o que não
era incomum. Um frenesi, uma excitação que move a vida lhe acompanham enquanto conhece
esta pessoa incrível. Porém, não demora muito e isso passa ou ameniza. Mas logo
a seguir há outra mulher ainda mais bonita, e outra ainda mais inteligente,
outra certamente será mais divertida, outra deliciosamente mais fogosa, haverá outra
mais misteriosa. Sempre há mais e ele sempre quer mais. Tem consciência disso e
quer se convencer de que não faz para ostentar números, para pontuar e contar vantagem
com os amigos. Sabe que não precisa disso, mas no fundo se compraz por viver
toda esta intensidade e diversidade.
Por
ter consciência disso e não querer ser má pessoa, é preciso ser honesto, é
preciso não iludir. Nunca aprofundar a relação, evitar intimidade. Se
necessário, deve pular fora antes que venham sentimentos da outra parte. Dormir
junto de alguém? Jamais, muita proximidade gera efeitos indesejados. Se uma
ficante se demonstra mais envolvida, é preciso se afastar, manter distância. O
convívio desgasta as relações. No dia a dia os defeitos aparecem, os conflitos
e as cobranças também. É bem melhor estar com as pessoas em seus melhores dias,
quando elas estão com bom humor, quando elas efetivamente querem te encontrar,
quando querer beber, rir, fazer um sexo gostoso contigo. Por outro lado, não é
nada divertido ter que ouvir desabafos, pessoas reclamando da vida, pedindo
conselhos para situações horrorosas em que elas mesmas se meteram, ou pior,
quando te pedem alguma ajuda e te dão trabalho. Isso ele definitivamente queria
evitar. Já era exaustivo demais cuidar de si próprio para ter que cuidar de outrem.
Definitivamente, cuidar de outra pessoa não estava em seus planos de vida. Grande
parte dos seus amigos estão casando, alguns tendo filhos. Os relatos dos
problemas conjugais e familiares lhe soam como um pesadelo em vida.
No
entanto, por contraditório que pareça, ao mesmo tempo que tem aversão a
qualquer ideia de compromisso, quer ser lembrado, quer manter algum tipo de vínculo,
quer ser marcante para as outras pessoas. Por isso some e reaparece de tempos
em tempos. Parece ter sido o mecanismo que criou para não enjoar, não se sentir
preso e ainda assim continuar a acumular, sem perder. Mais experiências, mais
pessoas, nunca menos.
De
tempos em tempos, porém, se pergunta se há algo de errado com ele. Não parece
ser viável viver esta intensidade pelo resto da vida. Mas logo depois chama um amigo
para tomar uma cerveja, vai para uma boate ou marca um encontro pelo aplicativo,
pois não lhe faltam contatinhos. A leve angústia vai embora até novamente lhe
incomodar e ele acionar seus mecanismos para interromper a inquietação.
Hoje,
porém, tudo está diferente. Ele está em quarentena. Um vírus mortal força pessoas
de todo mundo a se trancarem em casa para escapar a uma possível e asfixiante morte.
2 em cada 8 habitantes contaminados precisará de hospitalização para sobreviver
à pandemia. Parece estória de ficção científica, mas é real. O ano é 2020 e o
vírus é o covid-19. Por essa, nosso personagem não esperava, quase ninguém
esperava à exceção de alguns cientistas e outros ansiosos por um apocalipse.
O
desejo mais instintivo de nosso personagem é o de furar a quarentena, continuar
a sair, a beber e a diversificar sua vida sexual. Mesmo que o fizesse, porém, o
mundo lá fora não é mais o mesmo. Não está mais disponível e lhe sorrindo como era
de costume. Bares e casas de show estão fechados. Mesmo que muitos amigos
queiram ignorar a quarentena, vários outros estão preocupados com seus parentes
ou consigo mesmos. E é principalmente por estar absolutamente apegado à própria
vida que nosso personagem resolveu se resignar ao mundo do cotidiano. Como parte
do grupo de risco, precisava se proteger.
Trancado
em casa, as horas parecem sempre iguais. Viver com seus pais até então era algo
que não o incomodava em nada. Era muito confortável na verdade. Seus pais nunca
lhe impuseram restrições ao uso do espaço, muito menos responsabilidades ou
obrigações. Podia sair e voltar a hora que quisesse, comer em casa ou na rua
sem precisar avisar a ninguém. Podia ainda trazer quem quisesse, sem nem
precisar apresentar à família. Circulava livremente pelo lar sem quaisquer limitações.
Mas agora era tudo diferente. O que era um porto seguro para reabastecer e dar
continuidade às suas viagens aventureiras, tornou-se uma prisão horrendamente
previsível. A leveza e a falta de rotina que caracterizavam seus dias,
repentinamente cessaram de existir.
Tentava
se ocupar. Cursos online, papo virtual com amigos, Tinder visando animar a vida
quando tudo isso acabasse. Mas nada, absolutamente nada amenizada a ansiedade. Antes
calmo, tornava-se agora irritadiço, descontava nos pais, no cachorro, nos
gatos, na parede do seu quarto. Era como se sem a intensidade e a renovação
constantes não lhe sobrasse nada a que se apegar e sentir prazer. O tudo de
repente sumiu e agora parecia só haver falta. E esta falta o consumia. Começou a
se incomodar com ela e a pensar sobre o que ela significava. Por que precisava
tanto das agitações, da mudança, por que não consegue suportar a repetição, o
tédio? Pensou em Freud, nos excessos que encobrem carências, mas não entendia o
que lhe faltava. Esta noite, ele socou e quebrou o espelho de tanta raiva por
não conseguir responder.
Mariana Penna, 2020