domingo, 28 de junho de 2020

Casamento

Chamam de ideologia de gênero a pessoa poder se vestir com as cores que quiser e desenvolver capacidades humanas que independem do órgão sexual que a natureza lhe destinou. Eu chamo isto de liberdade. Faz mais sentido chamar de ideologia de gênero ao enquadramento forçoso dos indivíduos em determinados papéis sociais a depender do formato da sua genitália.

Eu nasci no sexo feminino e, como a imensa maioria das meninas, aprendi desde cedo a gostar de rosa, a ter que me mostrar bonita, a me fazer agradável aos homens e a ter como objetivo máximo ser escolhida por um deles, de quem dependeria primordialmente minha felicidade.

Tudo ao meu redor me ensinou essas lições: meus brinquedos, os desenhos animados, programas de TV, a escola. Em algum nível a gente internaliza o papel e não se elimina esta “ideologia de gênero” por um ato de vontade, por mera racionalização crítica. No extremo você entra em negação. E o que a gente mais nega, mais está dentro de nós, pressionando para sair arrebentando a represa.

Mas ok, se ao menos eu fosse fruto somente de uma das correntes, seria mais simples. Porém, há a tensão do outro polo.

Acredito que a maioria das pessoas nutra desejos de grandeza. Tantos são aqueles que sonham em se tornar celebridades, fantasiam-se na pele de super-heróis e homens de poder. Mas, num determinado momento, olham ao seu redor, cercados por todos os lados de meros mortais. Não demora muito para cair a ficha e pousam seus pés no chão. Assim as pessoas seguem e constroem suas próprias vidas, sem grandes fantasias e frustrações.

Mas quis o destino me posicionar em circunstâncias um tanto diferentes. Nasci no dia do santo “príncipe dos apóstolos” e fui batizada com o nome da bisavó paterna, uma humilde e devota mãe de família do interior de Goiás. Por sobrenome, outro ancestral, uma geração acima dela. Também do lado paterno, mas, diferentemente da bisavó de quem herdei o primeiro nome, este trisavô só me vinculava aos ancestrais masculinos: era pai do pai do pai do meu pai, três vezes avô, um Patriarca com P maiúsculo.

Chefe máximo da nação, alguns diriam que o mais típico presidente da Primeira República. Seu filho primogênito, meu bisavô, ministro da justiça no mais conturbado governo da Primeira República. Daquela geração pra cá, só decadência. Ninguém mais assumiu cargo eletivo, ninguém ocupou cargo na Academia Brasileira de Letras, ninguém sequer se destacou economicamente. Mas todos, invariavelmente, tiveram que se haver com as sombras desse fantasma.

Quanto à velha Mariana, nunca me interessei por sua história. Em que pese minha carolice de infância, em nada me empolgava saber sobre suas rezas.

Quanto ao velho Affonso Penna, tampouco me interessei em saber sobre sua vida, mas por vários anos me fantasiei em sua posição.

Presidente da República, eu respondia quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescer. Mas eu não queria ser igual a ele, meu país tinha problemas demais para acreditar que ele tivesse sido verdadeiramente um bom presidente. Eu queria ser melhor. Parecia tudo tão fácil, bastaria força de vontade para mudar: mandar construir casas para os desabrigados, dar comida aos famintos, tirar dos muito ricos e distribuir para os pobres. Quando se é criança, tudo parece muito simples. Algumas pessoas adultas continuam com a mentalidade assim, isso explica como se elegem uns “salvadores da pátria” como o gângster na presidência atualmente.

Mas a complexidade ia batendo, ou melhor, espancando a minha porta, conforme os anos passavam. E começou pelos livros e aulas de história. Como eu adorava ler e ouvir falar sobre os grandes feitos da humanidade e seus grandes homens! Acontece, porém, que eram sempre homens mesmo, como meus ancestrais importantes. Me recordo de algumas vezes repassar as páginas do livro de história e me sentir triste ao constatar a quase ausência de grandes personagens femininos.

Até onde eu sabia, àquela altura da vida, nenhuma mulher jamais havia sido presidente.

Os anos passaram, eu cresci, mas os desejos de glória se mantiveram lá no fundo. Veio a adolescência e a vontade de poder se fantasiou na sua negação. Acabar com toda forma de autoridade e hierarquia, estabelecer um mundo de plena liberdade e igualdade, onde ninguém mandaria em ninguém. Mas é óbvio que, na fantasia desta tarefa redentora, eu não seria expectadora ou mesmo coadjuvante, mas sim protagonista: uma grande e destacada revolucionária.

Lado a lado da aspirante a presidente, agora convertida em liderança anarquista, vivia a princesa à espera do príncipe encantado. Mas na adolescência ela se fantasiou de mulher macho, durona, que debochava das ilusões do amor romântico. Pagava de menina liberal vida louca, enquanto sequer beijo na boca tinha dado.

Até que tive meus primeiros namoradinhos, não sentia por eles nem paixão, nem tesão. Convenci-me de que os relacionamentos na vida real eram assim, essa coisa morna ou mesmo fria. O arrebatamento da paixão só existiria enquanto fosse platônico. Realizado, perderia a cor, o brilho, como ocorria com as demais coisas da vida.

Casei aos 19 anos para poder viver uma aventura do outro lado do mundo. Sem vestido, sem alianças, sem festa e sem paixão. Corrigindo, alianças teve, ainda que umas fajutas de prata, por muita insistência da minha mãe.

Me enojava quando ouvia as pessoas se referirem a mim como casada. Definitivamente eu não sinto que fui de fato casada. Ou fui, mas na mesma medida em que uma mulher que perdeu o hímen, mas nunca na vida experimentou um orgasmo, não é considerada virgem.  Pra mim ela é uma eterna virgem, como tantas tristes mulheres das gerações que nos precederam.

Talvez este meu asco viesse da imagem que construí da mulher casada e, principalmente, da mãe. Não à-toa, quando criança, eu queria que todas as minhas brincadeiras de Barbie se encerrassem no casamento. O ápice e, preferencialmente, o fim da história. Tudo depois disso era tedioso e sem glamour. Parecia o fim da vida, o “game over” dos sonhos. Nem vontade de mudar o mundo a Barbie tinha depois de casar.

Porém hoje, às vésperas de completar meus 35 anos, eu adoraria me casar e o faria com toda a pompa. Me vestiria como uma fada, rodeada de flores e de frente pro mar, cercada das pessoas queridas e uma festa memorável se seguiria à cerimônia.

Mas para que este “ápice” não se tornasse o “The End” da minha história, antes eu preciso realizar outro casamento. Enquanto não conciliar o homem e a mulher que habitam em mim, nada nem ninguém me trará genuína satisfação. Quando o homem e a mulher não mais precisarem destruir um ao outro para tentar existir, aí sim estarei inteira.

Mariana Affonso Penna,

28 de junho de 2020.