domingo, 15 de dezembro de 2019

A última confissão



Volta e meia conto essa história, sempre em tom jocoso. Para atrair meus ouvintes lanço logo uma sinopse: na última vez que me confessei, contei pro padre que não acreditava em deus. Alguns já riem nesse ponto e me perguntam se não é uma piada ou se não fiz propositalmente como um deboche com o religioso. A experiência, porém, foi antes dramática do que cômica. Dessa vez irei contar de forma mais fiel aos sentimentos que me levaram a esta situação aparentemente hilária.
Era uma época difícil pra mim, início de adolescência, escola nova na qual ao invés de amenizar meus problemas de inadequação social, estes se aprofundaram. Eu tinha treze anos, estava na sétima série, atual oitavo ano. Tinha acabado de sair de uma escola na qual eu havia estudado desde que comecei a aprender as letras e os números, aos cinco anos de idade. Apesar dos muitos anos lá, nunca me adequei. Esperava que com a mudança de ares as coisas pudessem ser diferentes, mas a verdade é que se tornaram mais difíceis do que nunca. Nesta segunda escola as zombarias alcançaram seu ápice. Os meninos, principalmente, estavam por trás dessas humilhações. Riam do meu corpo, da minha ausência de curvas, pois enquanto as outras meninas já desenvolviam características femininas, eu ainda era muito magrinha e tinha corpo mais infantil.
Para fugir dos deboches, recorri aos velhos subterfúgios: me esconder na igreja do colégio. Durante a maior parte da experiência escolar, o apelo a deus era meu principal recurso para pedir amparo frente às violências psicológicas que aquele mundo me impunha. Eu rezava e rezava, fazia promessas, frequentava regularmente as missas. Nada mudava, mas eu mantinha minhas esperanças sem questionar jamais o todo poderoso.
Até que o jamais deixou de o ser, e não foi uma escolha. Aos 13 anos a minha fé foi simplesmente se esfacelando. Não era de maneira alguma uma manifestação de revolta por não ter meus desejos atendidos, não foi uma decisão voluntariosa, era, ao contrário, um ato de razão. A lógica não me permitia mais crer. Simplesmente não fazia sentido. A Bíblia tinha sido minha grande verdade, guiou minha vida até então, estabeleceu sentido à existência. Mas seu sentido desmoronou diante de mim frente ao conhecimento sobre a história da humanidade. Os seres humanos existiam há muito mais de 2 mil anos, as religiões eram muitas e de diferentes matrizes, várias delas guardando poucos elementos em comum e nenhuma origem compartilhada. A razão me dizia: Por que a sua fé há de ser a certa se há e houve, no decorrer da existência humana, tantos outros credos?
A consciência disso me assombrava e eu pedia a deus pra me colocar de novo no rumo certo e me dar a fé da qual eu tanto necessitava para manter meus horizontes inabalados. Mas não adiantava, nada adiantava. E eu não tinha com quem compartilhar aquilo, pois não queria que ninguém soubesse. A fé cristã era um elemento que por toda a minha vida consciente, até então, havia dado as minhas bases de sustentação. Porém, eu não tive escolhas, ela simplesmente desmoronou, e toda a barreira de contenção que tentei construir parecia inútil frente à força das pedras rolando ribanceira abaixo.
Mas um padre talvez pudesse me ajudar, era meu recurso último. Fui buscá-lo justamente em meu santuário, na igreja da escola. Era um padre estrangeiro, jovem, seu sotaque sugeria origem hispânica, mas não perguntei, eu estava ali para tratar o meu drama, meu grande drama. A igreja estava vazia, éramos apenas nós dois ali presente. Estava um pouco escuro, dando um ar sombrio ao ambiente. A confissão não se ocorreu no confessionário, mas sentamos em bancos regulares ao final da capela. Desde o Concílio Vaticano II foi-se evitando certas formalidades e o distanciamento entre o clero e os leigos foi desencorajado. Sentávamos lado a lado.
O padre deu início ao rito da confissão e me perguntou sobre os meus pecados. Foi então que disse a ele não saber se era propriamente um pecado, pois eu não tive qualquer intencionalidade frente ao ocorrido, o fato era que eu simplesmente não conseguia mais acreditar em deus e precisava de ajuda por desejar de todo meu coração reverter aquele quadro. O padre ficou estupefato com a declaração. Tento imaginar a surpresa que teve ao ver aquela menininha de 13 anos, com aparência de 11 ou menos, dizendo que não conseguia acreditar em deus. Ele então começou a me interrogar sobre meus hábitos religiosos. Queria saber se eu rezava todos os dias. Respondi que invariavelmente ao amanhecer e antes de dormir e muitas vezes previamente às refeições. Perguntou se eu ia com frequência à igreja. Contei-lhe que participava das missas todos os domingos.
Conforme o jovem padre ia tentando contornar a difícil situação em que lhe coloquei em busca de uma solução para o problema, falhando miseravelmente sua postura tornava-se cada vez mais irrequieta e de desconforto. Enquanto isso eu chorava e chorava cada vez mais intensamente conforme percebia que nem o padre podia me dar respostas para meu problema. Nem ele poderia fazer as coisas voltarem a ser como eram antes. Ao final das infrutíferas tentativas, o jovem sacerdote entregou os pontos. Me pediu perdão pois não tinha como me ajudar. Seus olhos marejaram ao expressar esta desistência. Ele havia perdido aquela batalha, quiçá internamente se iniciava outra batalha. Fui embora, inconsolada. Nos despedimos, não lembro se ele me abraçou ou não, mas lembro do seu olhar de tristeza e desalento que valia por um abraço.
A evasão da fé não foi uma escolha, simplesmente aconteceu. Foi o fim das esperanças num porvir místico. O reino de paz, harmonia e eterna felicidade divina nunca mais serviu de consolo para as frustrações da existência. Não havia mais uma promessa de um futuro melhor, não havia mais esperança na salvação em que eu pudesse me apegar. Por mais dois anos continuei a frequentar a igreja e não compartilhei com mais ninguém a minha falta de fé. Por vezes eu acreditava que ela podia voltar, mas não durava muito e mais uma vez eu me encontrava só. A quem eu poderia recorrer? A que esperanças me agarrar? Não havia. E esta falta de caminhos e de sentido era desesperadora. Mas se por um lado significou perder meu chão, por outro marcou o fim da tutela transcendental na minha vida. Eu não era mais uma serva de deus, pois deus não estava mais lá. Por um breve tempo isso significou solidão e desespero apenas. Mas passados alguns anos isso significaria autonomia e liberdade. Sem mais os comandos nem mandamentos divinos, meus valores deveriam ser guiados por princípios por mim mesma estabelecidos e conscientemente abraçados. Enfim eu podia escolher e assumir a responsabilidade por essas escolhas.
Se a orfandade de deus me deixou temporariamente sem rumo, sem horizonte, nem sentido de existência, mais tarde outras utopias preencheram esse vazio. No passar dos anos, também as utopias foram desmoronando e abrindo espaços para novos vazios. Hoje tenho menos medo da perda de sentido, da perda de um objetivo de vida. Parece que ser e me responsabilizar pelos prazeres e pelas dores da existência se tornaram mais aprazíveis do que o apego à esperança em algo que me transcende e sua promessa de realização suprema. Seja esse algo deus ou a revolução. Mesmo sendo alguém que estuda e entende as utopias e ucronias como importantes motores da história humana, sou eu própria cada vez menos uma pessoa utópica.

Mariana Penna, 2019.



domingo, 15 de setembro de 2019

Branquitude




Luara era uma menina de 10 anos de idade. Uma linda criança de pele negra, cabelos negros e absolutamente lisos, olhos castanhos escuros, quase pretos. Uma garotinha leve, de atitude descomprometida. Parecia flutuar pela existência sem medo de sanções, sem se preocupar se cumpria ou violava regras de convivência. Fomos amigas por um tempo. Certa vez Luara me contou sobre o fim do mundo, disse-me que ele se aproximava e que no ano 2000 tudo iria se acabar. Falava sorrindo, sem preocupação, como se o advento milenarista fosse algo de tão pouca dramaticidade que pudesse me contar como mera curiosidade. Mas eu era pesada, não compartilhava em nada a postura despreocupada de outras crianças. Primeiro, duvidei. Algo tão sério não poderia ter passado alheio ao meu conhecimento. Mas ela afirmou ser real, pois estaria escrito na Bíblia, no livro do Apocalipse. Se estava na Bíblia, para mim era inquestionável. Nada podia ser mais verdadeiro que a palavra do deus, aquele a quem eu tanto temia. Procurei minha mãe para averiguar a informação. Mamãe tentou me acalmar, relativizou, falou sobre o ano 1000 e a continuidade do mundo após aquela data. Mas não adiantou. Eu precisava chegar às minhas próprias conclusões. Li de cabo a rabo o Apocalipse, reli. Aquela linguagem cifrada me tirava o sono e suas passagens escatológicas me assombravam como um filme de terror. Mas Luara não se importava com isso, sequer sofria pela ideia de morrer aos 15 anos. Ela tinha outras preocupações. Certo dia, pela manhã, nos encontramos para brincar num terreno baldio de frente pra minha casa. Ela estava especialmente animada. Pediu para que eu olhasse sua íris com atenção. Perguntou, com euforia, se eu estava conseguindo ver uma manchinha verde próxima à pupila. Observei uma coloração um pouco distinta e respondi afirmativamente. Saltitando de alegria, a menina me explicou o motivo. Na noite anterior, havia rezado muito e pedido a Deus que tornasse seus olhos verdes. Estupefata, olhei para ela assustada, identificando ali uma tremenda blasfêmia, um sério pecado. Não se podia pedir a deus por uma coisa tão fútil, não cabia a nós humanos questionar os desígnios divinos quanto à nossa natureza corporal. Eu também gostaria de ser loura de olhos claros como as paquitas da Xuxa, ou como as minhas Barbies. Mas não se poderia perturbar a deus com algo de tão pouca importância. Não era a saúde de ninguém que estava em jogo, não era uma questão de passar fome, a paz mundial não estava ameaçada por aqueles olhos escuros. Mas, como eu disse, Luara tinha outras preocupações.

Mariana Penna, 2019.


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Solipsismo: Fragmento 3

Aconteceu em um sonho
A vida tem reservado vazios, os sonhos chegam como preenchimento. Acordo, mas a vontade é de continuar a dormir. Os sonhos próximos ao despertar confundem-se com o estado de vigília. Três, quatro, cinco vezes me perguntei se estava desperta ou ainda adormecida. Buscava elementos que permitissem identificar o estado real que me encontrava e, ao perceber que ainda dormia, acordava noutro sonho. Demorou um pouco até que efetivamente abrisse os olhos na minha cama de verdade. E preferia ter continuado onde estava, vagando por histórias que se combinavam de formas não imediatamente compreensíveis.
Medo de perder o avião, sensação de estar sempre em trânsito em busca deste voo: um típico sonho que me ocorre com certa regularidade. Menos comum, mas que as vezes acontece é sonhar com diálogos virtuais reconfortantes. Se deu num aplicativo com um logo curioso: uma mistura de relógio com rosa dos ventos tendo por fundo o escuro estrelado do universo. E como tempo e espaço se mesclavam nessa figura, também as pessoas em diálogo se misturavam como tão rapidamente se misturam nomes e sentimentos em meio aos sonhos.
Adiei o acordar para adiar o encontro com a realidade distópica. Mais valia estar em trânsito ou num papo virtual do que me confrontar com a Destruição sentada confortavelmente no poder, zombando sobre nós, cuspindo mentiras e exaltando sua vitória. Como sequer tenho um xodó pra me fazer um cafuné e esquecer por alguns instantes o mundo que nos cerca, nessa conjuntura medonha, o que me resta de consolo é dormir.

Mariana Penna, 2019. 

quarta-feira, 29 de maio de 2019

B de Boston




“Eu te transformei nessa canção pra poder te gravar em mim.”
Pitty

A casa assombrada por nossos futuros espíritos antecipa a memória desses que nunca mais irão a ela retornar. A madeira das escadas nos fala sua língua secreta. Geme segredos que ainda não podemos entender.
Meu príncipe encantado tem as costas tortas, mãos geladas e hálito de cigarros. Mora há milhares de quilômetros e não sei pronunciar seu nome.
Me ama com pressa, treme ao me tocar. Tem um sorriso risonho, uma doçura no tom de voz. Mas me deseja com força, me toma e me aperta o pescoço.
A ansiedade e o tremor da falta de intimidade se compensam tanto pelo contato físico, como pela conexão de ideias. Paixões partilhadas, gostos compartilhados.
Percorremos juntos belos momentos de nossos passados individuais. A capital dos sonhos naufragados é o palco. A "igreja de marshmallow", da Praça Vermelha, no meio da madrugada junta-se aos adolescentes moscovitas loucos com suas Lamborghinis.
Lhe conto sobre o prêmio tartaruga stalinista, que lhe passou despercebido na visita ao nosso museu favorito, para que o guarde na memória. Me entrega o monumento revolucionário, seu drama e emoções que não conheci, mas que quase o fizeram chorar. Trocas de passados, trocas.
Nessa mágica dos encontros, nosso Zumbi cospe em Leopoldos. Bolsonaros não matam mais a História na Guatemala. E adolescentes podem conhecer o passado por doutores que não se sentem diminuídos em seus status por preferí-los aos pós-graduandos.
Não sabemos de números, por isso escolhemos a História, ele disse. Não sabemos de números, erramos, e o que era uma pequena fração pareceu número inteiro, digo eu.
E suas mãos frias, suas costas tortas, seu hálito de cigarros, seus milhares de quilômetros, viraram todos lindos adornos de um caso de amor imaginado.
E a imaginação transforma uma noite em uma vida.
Mariana Penna, 2019.


domingo, 21 de abril de 2019

A solidão e a noite



Essa história se passa numa época em que o mundo era bem diferente do que vivemos, mas os seres humanos nem tanto. Àquela época vivia-se em pequenos grupos e não havia parada certa para essas pessoas congregadas. A natureza a eles externa ditava ritmos e rumos. Seus corpos eram como os nossos, talvez um pouco mais baixos, mas igualmente carentes de pelos e de proteção contra as intempéries. Seus cérebros, grandes o suficiente para elaborar linguagens, sentimentos complexos, afetos e lógicas. Por milênios caminhavam assim, agrupados, interagindo entre si e com a natureza onipotente que a todo momento deixava claro quem mandava em quem. Contra esta força, por vezes imprevisível, era melhor não opor resistência, e sim conceder reverência. Os humanos sabiam se curvar aos seus caprichos e venerar suas manifestações as mais variadas. O sol, os rios, as plantas, os animais, as rochas, todos eram sagrados. 
Foi neste contexto que viveram os personagens desta história. Caçavam e coletavam as frutas e raízes que seus antepassados lhes ensinaram a apreciar, evitando as desconhecidas, a menos que a penúria os empurrasse a se aventurar como fizeram os pioneiros. Tudo era muito diferente de hoje, mas seus medos eram nossos medos. À instabilidade da vida moderna – de insegurança no mundo do trabalho, nos relacionamentos fluidos e fugazes – correspondiam as incertezas de uma ordem natural nem sempre previsível.
A insegurança era ampliada ao desbravar regiões completamente desconhecidas. A escassez levou esse bando a se deslocar. A caça rareava, os animais eram poucos e muito ariscos. As frutas e raízes eram insuficientes para alimentar a todos. Eram dezoito os que compunham o grupo, sendo cinco crianças pequenas, incapazes de contribuir efetivamente na busca por alimentos.
O fogo ajudava a se protegerem nas noites de frio quando estavam descobertos. Era um trabalho árduo produzir fogo, sendo uma tarefa comumente compartilhada e seu sucesso celebrado. Esforçavam-se ao máximo para manter a brasa acessa dias a fio, a fim de evitar os enormes esforços para produzir nova chama.
Todas as tarefas compartilhadas tornavam-se mais difíceis em contexto de deslocamento, mas era preciso envidar os mais heroicos esforços neste período de dificuldade. Os territórios eram ainda desconhecidos, os riscos estavam por todos os lados. Um grupo predominantemente de homens saiu para realizar uma caçada. Em meio a eles encontra-se nosso protagonista central. Preocupavam-se em deixar marcas no caminho, riscando as árvores e engendravam esforços para agir coletivamente na hora da caçada.
Mas nem sempre a preocupação e cautela falaram mais alto. A ansiedade por alcançar o objetivo levou nosso protagonista a se distanciar do grupo enquanto mergulhava na perseguição solitária de uma paca bastante corpulenta. No entanto, por rechonchuda que fosse, a bichinha não perdia em agilidade. O homem direcionou todas as suas energias para aquela caçada, como se dela tão somente dependesse a sua vida. Correu por entre galhos, saltou pedras, sem medo de ferir-se, e direcionando todas as suas forças, mergulhou a lança no meio do corpo do animal, que após certa agonia, silenciou-se. Nosso personagem sentia correr no sangue a sensação da glória. Respirava acelerado e sorria com imensa satisfação, orgulhoso do feito. Antecipava em sua imaginação o reencontro com os demais, exibindo generosamente a enorme paca que acabava de conquistar. Imaginar os sorrisos e agradecimentos nos olhares o deixou em êxtase. Enquanto recuperava o fôlego, essas cenas idílicas embalavam sua recuperação.
Porém, conforme a endorfina baixou em seu sangue, foi a vez da adrenalina e da noradrenalina voltarem com toda força: assustou-se ao descobrir-se sozinho. A sensação de desespero disparou-lhe o coração. Como faria para reencontrar o grupo? Seria possível retraçar o caminho percorrido? Será que seus companheiros de caçada o encontrariam sem que para isso precisasse se esforçar? Vários eram os pensamentos que assaltavam sua cabeça inquieta, mas não conseguia decidir-se quanto ao que fazer tamanha era a ansiedade que por agitadora que fosse, na prática paralisava pelo excesso de estímulos.
Era preciso decidir, respirou, olhou sua caça, olhou o entorno. Decidiu-se. Lançou o corpo da paca em suas costas, segurando-a sobre o ombro esquerdo, agarrando-a junto com a lança, e pôs-se a caminhar tentando retraçar a rota percorrida. Se colocar em movimento o havia tirado da paralisia. O sentimento de otimismo e esperança acalmaram sua angústia. Era ainda o início do dia, o sol ainda brilharia por um longo tempo, intervalo este que esperava ser suficiente para corrigir o terrível erro.
Andava e andava tentando observar marcas no solo, galhos quebrados, ou qualquer outro indício de sua passagem prévia por ali. Mas apesar das pistas encontradas, não avançava o suficiente para reencontrar seus pares. O sol se movimentava nos céus, indicando que seu tempo minguava. Já havia passado pelo alto de sua cabeça e começava a descer para apagar-se no horizonte.  Esperança e desespero duelavam, disputando o controle de sua mente. Pensamentos otimistas e pessimistas de intercalavam e os intervalos entre uns e outros ficavam cada vez mais breves.
A fome e o cansaço pareciam alimentar a angústia. Precisava parar para descansar, mas haveria tempo para isso? Se esforçava mais um pouco. O sangue da paca escorria em seu corpo. Resolveu ceder. Com a ponta da pedra de sua lança alargou o corte que vitimou o animal e pôs-se a sugar o sangue e a mordiscar um pouco da carne. Não muito, queria compensar seu desencontro ofertando aos seus companheiros uma compensação pelo aborrecimento. Pensava nas preocupações quanto ao seu paradeiro. Será que sentiriam sua falta? Certamente não tanto quanto ele sentia dos demais. A solidão ia tornando-se pouco a pouco mais insustentável conforme o dia findava.
Após a pausa, demorou um pouco a se colocar em ação mais uma vez. Era o desalento se aproximando dele. Dizia ser inútil se esforçar. Caminhava lado a lado com o pessimismo, mas não era de todo avesso à esperança. Este último sentimento tem formas curiosas de agir já que pode se manifestar também como ilusão. No caso do nosso protagonista, era a ilusão de que forças redentoras, que dispensavam seus próprios esforços, viriam ao seu socorro, tirando-o do desespero e levando-o de volta ao bando. Em alguns momentos ele desejava ardentemente e invocava espíritos sobrenaturais para agirem em seu favor. Por alguns instantes, convencia-se de que o desejo manifesto em fé concretizaria uma realidade mais favorável. Mas ao confrontar-se com a verdade de que nada mudava, vinha o desalento e pensamentos de que não haveria alternativa pois tivera sido amaldiçoado e aquela seria a sua punição.
Porém, após o esvaziamento da esperança de um resgate sobrenatural, e, principalmente após o desalento de sentir-se amaldiçoado, misteriosamente surgia uma nova energia. Esta energia, parecia emergir da desilusão como um último suspiro de sobrevivência. Ao se defrontar com a realidade absolutamente adversa, percebeu-se essencialmente só. Reconheceu que, no fundo, naquele momento não poderia contar com ninguém e com nada além de suas próprias forças. Voltou a caminhar, com os pés doendo e os olhos ainda repletos de lágrimas, mas era preciso seguir em frente.
Mas não tardou até o anoitecer e com ele a ansiedade alcançava seu ápice. O anoitecer significava o risco máximo à sua existência, estaria vulnerável como nunca. Não haveria pior momento para estar só, pois é justamente durante a noite que manifestamos nossa natureza mais gregária. Conforme escurece, aumentam os perigos, a visão torna-se insuficiente, os seres humanos frágeis. É o momento do medo do que não se pode ver, do desconhecido e ameaçador. O bando já devia estar plenamente reagrupado naquele momento, unindo-se todos contra as ameaças externas que a noite traz. Pois além dos animais violentos, vem também o frio. O frio aproxima fisicamente as pessoas, compartilhando seus calores, defendem-se de mais um inimigo noturno.
Talvez pelas razões da sobrevivência, ainda hoje a noite é o pior momento para se estar só. As crianças se amedrontam com a escuridão e procuram o carinho de seus cuidadores. Mas o entardecer também é romântico. Ao pôr do sol se encontram amantes, amigos. Após um longo dia de trabalho, as pessoas anseiam pelo conforto de seus lares e pelo afeto daqueles com quem coabitam. Por outro lado, o entardecer amplia a dor dos solitários. Os términos de relacionamentos doem mais quando chega a noite. A solidão fere mais intensamente. A pessoa independente, desgarrada, que vive por conta própria, não tem a quem recorrer frente às angústias da noite. Não tem em seus pares a possibilidade de um aconchego noturno. Nossos arranjos modernos são respostas ao primordial instinto de autopreservação e de continuidade da espécie. Viver longe deles tem seus custos.
E para nosso protagonista, que viveu nesses tempos primordiais, a noite era efetivamente uma ameaça à sua existência. Seu medo psíquico expressava efetivamente uma ameaça física. Sua integridade estava por um triz. Liberou seu medo que chegou ao ápice. Gritou de pavor e raiva, depois disso, chorou mais uma vez. A desesperança tomou-lhe por inteiro: como poderia sobreviver sozinho à noite que se avizinhava? Começou a se morder nos braços, como se inconscientemente quisesse acelerar sua destruição para amenizar o sofrimento. Mas o ato de autoflagelação lhe fez parar e refletir. Mais uma vez encontrava seu limite, seu fundo do poço, antes de soerguer-se. Ainda havia um resto de luz solar, precisava de um lugar para pousar, não podia caminhar durante a noite. E acima de tudo, precisava de calor. Recolheu os gravetos e folhagens o mais secos possível que encontrou no entorno. Não foi nada fácil encontrar, a umidade vicejava naquela floresta. O local escolhido também precisava ser mais seco, por isso buscou um leve aclive.
Desistiu de preservar intacta a paca. Foi-se o orgulho, era preciso pôr-se em primeiro lugar caso desejasse sobreviver. Rasgou-a com vontade, desfigurando completamente o belo animal. Mordeu e mastigou suas partes mais maciais. Com fome não suportaria os rigores da noite. Aliviado o desconforto de um estômago vazio, se colocou ao trabalho. Juntou folhas, gravetos e galhos. Montou o esquema para iniciar a fricção em busca de uma chama. Sabia que era uma tarefa árdua, difícil para um só executar, mas não se abalou. Com a pedra descascou um pequeno círculo no centro do galho maior para servir de base e com um graveto entre as mãos começou a roçar freneticamente nesse corte circular em busca das tão desejadas faíscas. Passou um longo tempo repetindo este movimento vigorosamente, mas suas mãos e braços estavam cada vez mais cansados para suportar. Chegou ao limite de seus esforços quando foi tomado por mais uma onda de desespero. Os pensamentos pessimistas se impuseram como reis absolutos: a madeira deveria estar úmida demais, seus esforços nunca bastariam, era seu fim. O choro mais uma vez abafou suas energias, seu espírito parecia afundar num nível abaixo do corpo sentado ao chão. Suas mãos tremiam em parte pelos esforços repetitivos, em parte pelo nervoso. As lágrimas vertiam em quantidade e o desalento aprofundava. O frio piorava e lhe encolhia todo o corpo. Foi então que se entregou ao pensamento como alento frente ao que parecia uma tragédia inevitável. Acionou a memória e lembrou das noites de carinho, de aconchego, dos afagos tão reconfortantes que embalavam seu sono. Era muito agradável, mas como doía saber que não era isso que a vida lhe reservara praquele momento. E ao invés de interromper a imaginação, mergulhou ainda mais no devaneio: sonhava acordado que seu bando o reencontrava. Recebia inúmeros abraços e comidas. Uma fogueira aquecia e estimulava a dança. Era o paraíso. E por um tempo ajudou. O reconforto do sonho, da fuga de uma realidade tão inóspita, preservou-o do desespero absoluto. Mas como toda ilusão, cedo ou tarde é chegado seu fim. Não há amigo imaginário que supra completamente o desejo de socialização de uma criança solitária, e assim como um dia ele vai embora, também os devaneios de adultos têm seus limites. O frio lhe doeu o corpo e deixou claro que enfrentá-lo era um imperativo. A lua já havia se movimentado tanto, sabe-se lá quantas horas dos nossos dias teriam passado desde o anoitecer do solitário protagonista. E ele se levantou, com menos energia e ânimo do que quanto pôs-se primeiramente a trabalhar, mas sim com a frieza de quem não vê outra alternativa, por mais que não tenha qualquer garantia de resultado. E quando o braço lhe doeu ao extremo, parou, mas não chorou mais. Passado um tempo para recuperar o movimento, continuou e continuou. Sem quase pensar, agindo no automático. Até que... uma faísca! Seus olhos cansados até duvidaram, mas empenhou-se com mais ânimo e efetivamente conseguiu identificar o início de uma brasa. Daquela noite sem fim brotou uma luz. Aproximou a brasa das folhas secas e soprou, soprou. O fogo enfim vingou! Do oxigênio que ventava de seus pulmões soprou energia suficiente para alimentar as primeiras chamas. Aos poucos tinha uma fogueira. Podia se aquecer e até assar alguns pedaços da paca já meio estraçalhada. No céu, a noite já não era absoluta, o horizonte parecia indicar a chegada dos primeiros raios do dia. Mas o alívio de conseguir a chama aqueceu seu corpo e espírito. A ansiedade esvaiu-se o suficiente para que pudesse adormecer. No dia seguinte, ele já sabia, faria de tudo para preservar a brasa e seguir sua busca pelo bando. O desespero viria, o desalento viria, mas não podia desistir, ainda que só contasse com suas forças, abandonado que se sentia pelos espíritos ancestrais e pelas forças da natureza. Não havia qualquer certeza.
Mariana Penna, 2019.


quinta-feira, 11 de abril de 2019

Raiva



Durante muito tempo achei ser possível viver fugindo da raiva como se ela fosse algo ruim por essência. Mas não, nenhum sentimento humano existe à-toa. A raiva funciona como muitas vitaminas em nosso corpo, se você usa demais ela é nociva, mas sem ela também não se sobrevive.
Talvez por ter vivido uma experiência traumática de passar quase 4 anos num ambiente que só transpirava raiva, tomei crescentemente uma aversão ao conflito. Mas ele e seus sentimentos são inevitáveis e até desejáveis.
O problema é que a raiva parece ser plenamente controlável, ou melhor, parece ser possível sobrepô-la. A compreensão é o principal mecanismo para esse fim. Pelo exercício da empatia você tenta entender porque alguém age como age. O problema é quando acabamos aceitando tanto, compreendendo tanto, que em algum nível inocentamos em nosso íntimo aquele que perpetrou o mal. Ao invés de sentir e liberar a raiva, por vezes pedimos desculpas por expressar nosso descontentamento frente a agressão.
E agir sempre com cortesia tem seu preço. Não se contém a raiva, pois querendo ou não ela vai desaguar em algum sítio. Quanto mais isentamos o causador de nosso desconforto da culpa, mais ela toma rumo indevido. A raiva externaliza o mal-estar e nada melhor que o direcionar contra o que ou quem a causou.
Caso contrário o mal não devolvido volta, fica, humilha e vai nos apodrecendo por dentro. Aos poucos achamos que a culpa está em nós: afinal, por quê repetidamente nos maltratam? O que estamos fazendo de errado para que o outro aja assim conosco? A resposta já é expressão da minha liberação da raiva: estamos oferecendo o outro lado da face ao invés de devolver o tabefe. Cada vez que fazemos isso minamos nossa autoestima, matamos um pouco nosso orgulho próprio em troca de evitar o conflito, de ser a boa praça, a pessoa leve, compreensiva, fácil de se gostar. Mas a verdade é que esse “gostar” nem sempre é respeito. Um gostar sem respeito é um laço frágil demais. Pra quem agride é fácil gostar do conforto de não ser confrontado. Você se torna um cão que aceita o dono independentemente do que o seu senhor lhe faz. Apanha, mas volta com o rabinho abanando. O fiel “amigo do homem” não reclama, é compreensivo com tudo, aceita e devolve o mal com carinho. Cada vez mais prefiro ser gato e dar uma lanhada na cara do vacilão que me bateu.
Mariana Penna, 2019.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Sorria


- “(...) Sorria, sempre sorria! Os clientes não têm nada a ver com seus problemas em casa, eles não têm culpa se o seu cachorro morreu, se seu marido acordou de mau humor. Eles estão em busca de um bom atendimento e é isso que vocês irão ofertar a eles. Não importa o que aconteceu antes de você chegar ao trabalho, não importa se seu filho tirou nota vermelha na escola ou se seu marido bebeu demais na noite anterior. Assim que vocês cruzarem aquela porta, vocês vivem um universo paralelo e nesse universo não há problemas. Aqui vocês são a solução, são pessoas mais evoluídas, nada afeta sua missão de prestar o melhor atendimento. E é esse atendimento que vai garantir o crescimento e a realização profissional de vocês. E vocês irão perceber que, no fundo, esta realização trará tanta satisfação que efetivamente nenhum dos problemas no mundo lá fora importam mais quando vocês estão aqui dentro. Só depende de vocês, só depende de cada um de nós garantir que esta continue a ser uma empresa de excelência da qual iremos sempre nos orgulhar.”
Enfim nosso querido gerente terminou seu discurso motivacional. À sua fala seguiram-se vários sorrisos motivados, principalmente os das meninas recém ingressas. Eu também sorri, aquele sorriso muito espontâneo e sincero de uma comissária de bordo ao final da sua discreta jornada de mais 15 horas consecutivas. Não, eu não trabalhei 15 horas consecutivas naquela loja, foi apenas uma comparação irônica. Em verdade, eu reclamo, mas muitas vendedoras queriam estar no meu lugar. Talvez eu seja simplesmente chata. Ou talvez essa merda de discursinho motivacional realmente seja uma babaquice que funciona com pessoas que pouco refletem. O resultado é bom, as pessoas se engajam. É inegável que um ambiente de trabalho em que todo mundo faz a linha comissária de bordo é mais agradável que um ambiente em que se está cagando pra regras básicas de educação e cortesia no atendimento. É bom pros clientes e também é bom pra gente. Mas ainda assim, me enerva esse discurso. Antigamente chamavam trabalhador de funcionário, agora chamam a gente de colaboradores. É essa porra de sentimento de pertencimento que meu gerente ajuda a criar quando nos quer orgulhosas por esquecermos a vida lá fora. Vida e trabalho se tornam diferentes universos. Isso me lembra o que uma vez aprendi de uma professora de história: que antes da sociedade industrial a vida e o trabalho se misturavam, as pessoas trabalhavam em casa, faziam festa enquanto realizavam a colheita, não havia separação. Até que o trabalho virou outro mundo, um mundo desagradável que nos tira de onde queríamos estar. Mas meu gerente não aceita, quer que achemos ele um universo paralelo e quiçá melhor. Na verdade, não é só meu gerente. Outro dia sei lá porque diabos vi um vídeo no youtube falando sobre a criação de um novo celular da samsumg. Mostrava como os funcionários, ops, colaboradores, se isolavam em seu universo paralelo e desfrutavam de vários prazeres para ter ideias geniais e pensar o design do aparelho.
É, eu devo ser realmente muito ranzinza reclamando que os colaboradores não são mais tratados como os funcionários que ouviam grosserias e trabalhavam tão somente a base de pressão e ameaças. Não nego que essa configuração atual seja melhor, ainda que também me pareça ser uma situação de exceção a de “colaboradoras” como eu. Não consigo imaginar a equipe de limpeza da empresa terceirizada que cuida da loja onde eu trabalho ouvindo palestrinhas de psicologia positiva a cada dois meses como fazem conosco. Ah, vocês têm que ver a carinha de satisfação de algumas das minhas colegas depois dessas palestras. Umas parecem que acabaram de ter aquele orgasmo homérico que a gente só conhece no início dos relacionamentos, quando o cara ainda quer te agradar. Outras se emocionam como se tivessem acabado de assistir a morte do Mufasa. Eu acho patético, sempre patético. Como a cara do meu gerente e seu bom humor oco. Mas ainda assim, eu sorrio, claro. Ele me adora, fica muito evidente isso. É como com meus clientes, eu sou muito agradável. Falo sempre o que eles querem ouvir, e, principalmente, eu ouço muito. Ah, como eu ouço! Contam-me as coisas mais fatigantes e eu escuto, interajo. Modéstia à parte, minha retórica é foda. E isso eu não aprendi na faculdade, sempre foi assim, parece instinto. Ah, e sobre eu trabalhar de vendedora tendo uma graduação, não sou nenhuma exceção na verdade. Até me acho excepcional, mas por outros motivos. Só uma pessoa muito arrogante ficaria falando mal de todo mundo assim, não é? E, aproveitando o ensejo, vou falar mal da minha universidade e do meu curso. Eu fiz marketing achando que ficaria rica. Aqui estou, ganhando mais que muita gente, mas longe de ser uma colaboradora da Google. De nada me serviu aquela merda caça níquel, só pra criar dívida com FIES.
Mas o que importa é que eu sinto raiva, raiva dessa porra desse meu sorriso, raiva dessa porra dessa minha retórica bem construída visando convencer e agradar os outros. Que meu gerente nunca saiba disso. Tampouco que o saiba o meu namorado, aquele corno! Na verdade, ele nem é corno e isso me dá ainda mais ódio. Quase seis anos que estamos juntos e ele deitado em berço esplêndido. Eu sempre me esforçando para ser agradável, prever e realizar suas vontades, ser sua sempre atenta comissária de bordo. E ele sequer me faz uma surpresa no meu aniversário, nem mesmo esboça a menor intenção de morarmos juntos. Seis anos! Minha melhor amiga costumava dizer que os homens quando sentem que já concluíram a conquista se acomodam e xoxam a relação. Ela dizia que por isso a gente não podia dar mole, tinha que marcar em cima, cobrar. Mas eu nunca fiz isso, provavelmente por medo de perdê-lo, assim como não confrontaria meu gerente.
Essa cortesia forçada está realmente me dando nos nervos. Parece que me sinto em dívida com ela em tudo na minha vida e talvez por isso não consiga romper. Mas ao mesmo tempo é como eu tivesse um enorme desejo de ser rude, de xingar, de jogar na cara do meu namorado as meias sujas que ele espalha pela casa, falar pro meu gerente que ele é um medíocre que só chegou onde está por ser capacho e bem relacionado. Mas eu não extravaso nada disso. Talvez nos sonhos. Noite passada sonhei que eu espancava uma garota que fazia uma grosseria comigo. Tão sintomático. Talvez eu devesse espancar alguém na vida real pra dar vazão a isso. Brincadeira, eu não serei assim. Ou serei? Mas foi só pensar nisso que me veio à cabeça meu sogro. Se tem alguém que pede pra apanhar é meu sogro e ainda assim eu sou um docinho de coco com ele. Não bastasse a pergunta sem noção sempre direcionada a mim sobre quando daremos a ele netos, o inadequado faz constantemente comentários pejorativos sobre minha aparência e características físicas alertando que se eu não cuidar poderei perder o filho dele. Sério, parece inacreditável, mas ele já reclamou do meu salto, dizendo que homem não gosta de mulher muito alta, já falou que preciso malhar meu braço pois está muito gordo e flácido e como mulher envelhece mais cedo que homem tem que se cuidar mais. Sempre isso, me cuidar, cuidar dos outros. Sorrir. E é isso que eu faço quando ouço as grosserias do meu sogro: sorrio. É que nem como toda vez que meu namorado está lá em casa e vai embora sem sequer tirar o próprio prato da mesa...
- Cleide, desculpa te interromper. Mas já passou um pouco do nosso horário. Eu fico contente que você esteja cada vez mais consciente do que está gerando esta raiva constante em você. Vejo um grande progresso nesses meses de terapia. Só o fato de você admitir essa raiva, reconhecer esse seu demônio já é um passo incrível para o avanço. Te espero semana que vem no mesmo horário, certo?
- Certo, doutora. Muito obrigada.
Cumprimentaram-se com um abraço contido e dois beijinhos, despedindo-se a seguir com um sorriso e um aceno de cabeça cortês.
Mariana Penna, 2019.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

A menina que via a morte


Era uma menina que via a Morte. Quando pequena ela não sabia bem o que era aquilo, mas a Morte vivia passeando ao seu redor. Viu o espectro se aproximar dos bichos e depois percebeu que eles morriam. Viu rotineiramente ela se aproximar de sua avó que parecia respirar mais cansada toda vez que tal figura etérea dela se aproximava. A idosa ia ficando mais fraca até o derradeiro dia em que a menina viu a morte lhe sugar todas as forças. Sua avó faleceu. A conexão era lógica e a partir de então a menina passou a temer aquele monstro azul desesperadamente, como no pior pesadelo. Sim, a morte é azul e não preta como nos filmes. É azul como o céu em sua imensidão e que se reflete no mar. E assim como o azul se faz o tempo todo presente, também se fazia onipresente a morte na vida da menina, que passou a gritar em desespero toda vez que a via. E o pior é que assim como fazia com todos os seres, a Morte também vinha de tempos em tempos lhe sugar, sugava um pouquinho e ia embora. Não adiantavam seus protestos, a morte era a mais blasé das criaturas. Estapear-lhe era vão, a morte perpassava sem obstáculos todas as matérias e nelas todas dava, invariavelmente, a sua desagradável sugadinha, puxando para seu corpo etéreo azul o ar vermelho que exalava dos seres vivos.
Era vermelha a substância que ela sugava. Com o passar do tempo, a menina passou a associar o vermelho à vida, afinal era a vida que pouco a pouco a morte engolia, sem pedir permissão, nem licença. Conforme ela crescia, parecia fazer mais e mais sentido pensar a vida como o vermelho. Pensava no sangue, sempre em movimento em nossas veias e artérias, no fogo, no sol. Sim, a vida é vermelha. Já a Morte é azul. “Por que azul?”, encucava a menina. Só pensava no azul como inalcançável. Tal como o céu era também a Morte que não se podia tocar, nem estapear, ou mesmo controlar, só observar.
Mas antes que aprendesse ou aceitasse essa possibilidade, sua ira contra a intocável lhe gerou alguns problemas: se fosse rica, seus pais lhe mandariam para um terapeuta infantil, como não o era, sua mãe lhe levou para diferentes centros espirituais e igrejas para tentar lhe tirar os maus espíritos. Nada funcionou, mas com o tempo ela aprendeu que era melhor disfarçar para ser considerada uma pessoa normal. Tampouco tentar agarrar a Morte pela gola e dar-lhe algumas boas porradas se mostrava eficiente. Gritar e desesperar, tentar fugir, em nada dissuadiriam a Morte em sua constante e tediosa missão.
A menina já era uma adolescente e nessa nova fase da vida buscou também atualizar sua relação com a Morte. Se fugir ou enfrentar não eram mais opções, como poderia ela driblar o monstro? Era preciso entendê-la, mas que sentido havia na existência de algo que só faz sugar o vermelho da vida? Às vezes numa pequena proporção, como uma brisa, às vezes de uma forma tão violenta que parecia engolir um ciclone rubro, como era o caso das mortes repentinas.
Queria saber o que mais a Morte fazia além disso. Por isso, se ninguém estava olhando, começava a seguir a Morte. Porém, observou que, depois de cumprir sua missão, a monstrenga rapidamente se deslocava para outro lugar que não podia acompanhar, até aparecer novamente.
Desistiu de seguir a Morte, mas não de tentar entender um pouco aquela criatura que tanta dor deixava em seu caminho sem nunca expressar qualquer sentimento, qualquer empatia por aqueles que lesionava. A Morte era fria (talvez por isso azul), insensível. Fria como o homem que faz a guerra e mata outros homens desconhecidos por motivos grande parte das vezes também desconhecidos ou tão pouco refletidos que só com base em muita frieza podem ser considerados motivos.
E o frio é azul, pensava ela. Nos desenhos, nos filmes, o inverno é quase sempre caracterizado em azul. Vai ver por isso que os meninos são acostumados a gostar de azul: para serem aqueles homens frios que fazem as guerras, que amordaçam sentimentos, e não choram. Frios como a Morte que gera dor sem esboçar qualquer sentimento. Vai ver por isso que os meninos desde cedo ganham de brinquedos armas, carros de polícia, bonecos de soldados. Adestrados como soldados da Morte lhes são estimuladas brincadeiras violentas e a brutalidade forçada como pré-requisito para serem reconhecidos como seres dignos de vestir azul. Como se a Morte precisasse recrutar guerreiros, seu trabalho “natural” já é bastante eficiente.
Se é para lutar, pensava a menina, melhor lutar pela vida. Nesse sentido a educação das meninas parece melhor: brincar de gerar vida e cuidar das pessoas, limpar, cozinhar, arrumar e todas essas coisas dignas e lindas que deveriam ser atribuições de todos os seres humanos, mas que são vistas como vergonhosas para os meninos. Deve ser por isso que às meninas estimulassem usar o rosa. Rosa é vermelho, vermelho e branco.
Mas nem sempre a menina gostou de ser menina, lembrava-se. Essas atividades dignas e lindas, fundamentais à vida são também trabalhosas, e tantas vezes sua mãe lhe exigia que a ajudasse a cozinhar, lavar e passar enquanto seus irmãos homens jogavam e se divertiam livremente. É, ser um soldado da Morte pode trazer alguns benefícios.
Mas pensar em unir forças com a sua arqui-inimiga? Jamais! Lutaria sempre pela vida. Foi assim que meio por um acaso ouviu falar sobre e passou a ficar obcecada pela Cruz Vermelha. Pesquisou na internet e apaixonou-se pela instituição internacional cuja missão central é a de proteger vidas humanas da Morte. Aos 18 anos iniciou um curso de enfermagem, visando um dia ingressar na tão amada organização. Seria assim que confrontaria aquela que lhe rendeu tantos traumas. Aos 21 se questionava se conseguiria alcançar seu grande sonho. Tímida, de família pobre e sem contatos, era difícil acessar aquele universo. Mas ainda que mantivesse o sonho no horizonte, a paixão havia abrandado. A Enfermagem lhe rendeu muitas satisfações como compensação. Lado a lado de colegas aguerridos na luta pela vida, viu que nem todos os homens eram azuis, havia homens vermelhos. Pesquisando fascinada pela Cruz Vermelha descobriu também que seu fundador foi um homem, mais exatamente o suíço Jean Henri Dunant. Que bom seria se todos fossem assim, pensava ela enquanto voltava exausta do estágio. Mas em sua casa, só tinha por exemplo mulheres. Eram elas que estavam constantemente preocupadas com os outros, especialmente sua mãe e sua avó. Antes de pensarem em si próprias, cuidavam da família, vizinhos e ocasionalmente até de desconhecidos em necessidade. Coisa que nunca viu nos homens de seu parentesco, visivelmente preocupados consigo mesmos: seus trabalhos, seus lazeres, suas propriedades. Na escola, as professoras tinham calma e davam carinho, o inspetor era ríspido e agressivo. Em certo momento passou a achar que era da natureza dos homens todos serem azuis. A faculdade lhe fez ver que rupturas são possíveis.
Pensando nessas coisas, chegou em casa. Era noite, mas não havia ninguém. Era hora de culto. Foi esquentar a comida que sua mãe lhe havia deixado preparada. De repente, assustou-se, a Morte vinha fazer visita. Já deveria ter se acostumado, mas o cansaço baixou-lhe a guarda. Ela veio em sua direção de uma maneira inusitada. Posicionou-se bem a sua frente, como se a mirasse diretamente, mesmo sem olhos possuir. E disse: “A Morte está em todos vocês. Não há como me escapar, pois sou irmã do Tempo e da Tragédia, mas nunca pedimos que ninguém trabalhe para nós”. Assustada, tremeu todo o corpo, mas ficou estática, catatônica. O espectro pegou sua mão e furou-lhe o dedo indicador. Com sua mão etérea, mas que agora, pela primeira vez a menina podia sentir, a morte tocou o sangue que se tornou roxo. E desapareceu em seguida.
Como foi difícil dormir aquela noite. Praticamente impossível. O pior era não poder dividir a angústia com ninguém. Estava sozinha. De manhã cedo levantou-se exausta, mas precisava ir para a faculdade. Sua mãe deixava a televisão ligada e o telejornal da manhã noticiava uma grande manifestação. Várias mulheres e alguns homens protestavam contra um candidato violento e militarista. A menina não entendia muito de política, mas lhe chamou a atenção especialmente a cor das camisas e bandeiras que carregavam.

Mariana Penna, 2014/2016/2019.