quarta-feira, 29 de maio de 2019

B de Boston




“Eu te transformei nessa canção pra poder te gravar em mim.”
Pitty

A casa assombrada por nossos futuros espíritos antecipa a memória desses que nunca mais irão a ela retornar. A madeira das escadas nos fala sua língua secreta. Geme segredos que ainda não podemos entender.
Meu príncipe encantado tem as costas tortas, mãos geladas e hálito de cigarros. Mora há milhares de quilômetros e não sei pronunciar seu nome.
Me ama com pressa, treme ao me tocar. Tem um sorriso risonho, uma doçura no tom de voz. Mas me deseja com força, me toma e me aperta o pescoço.
A ansiedade e o tremor da falta de intimidade se compensam tanto pelo contato físico, como pela conexão de ideias. Paixões partilhadas, gostos compartilhados.
Percorremos juntos belos momentos de nossos passados individuais. A capital dos sonhos naufragados é o palco. A "igreja de marshmallow", da Praça Vermelha, no meio da madrugada junta-se aos adolescentes moscovitas loucos com suas Lamborghinis.
Lhe conto sobre o prêmio tartaruga stalinista, que lhe passou despercebido na visita ao nosso museu favorito, para que o guarde na memória. Me entrega o monumento revolucionário, seu drama e emoções que não conheci, mas que quase o fizeram chorar. Trocas de passados, trocas.
Nessa mágica dos encontros, nosso Zumbi cospe em Leopoldos. Bolsonaros não matam mais a História na Guatemala. E adolescentes podem conhecer o passado por doutores que não se sentem diminuídos em seus status por preferí-los aos pós-graduandos.
Não sabemos de números, por isso escolhemos a História, ele disse. Não sabemos de números, erramos, e o que era uma pequena fração pareceu número inteiro, digo eu.
E suas mãos frias, suas costas tortas, seu hálito de cigarros, seus milhares de quilômetros, viraram todos lindos adornos de um caso de amor imaginado.
E a imaginação transforma uma noite em uma vida.
Mariana Penna, 2019.