“Eu te transformei nessa canção pra poder te gravar em mim.”
Pitty
A
casa assombrada por nossos futuros espíritos antecipa a memória desses que
nunca mais irão a ela retornar. A madeira das escadas nos fala sua língua
secreta. Geme segredos que ainda não podemos entender.
Meu
príncipe encantado tem as costas tortas, mãos geladas e hálito de cigarros.
Mora há milhares de quilômetros e não sei pronunciar seu nome.
Me
ama com pressa, treme ao me tocar. Tem um sorriso risonho, uma doçura no tom de
voz. Mas me deseja com força, me toma e me aperta o pescoço.
A
ansiedade e o tremor da falta de intimidade se compensam tanto pelo contato
físico, como pela conexão de ideias. Paixões partilhadas, gostos
compartilhados.
Percorremos
juntos belos momentos de nossos passados individuais. A capital dos sonhos
naufragados é o palco. A "igreja de marshmallow", da Praça Vermelha,
no meio da madrugada junta-se aos adolescentes moscovitas loucos com suas
Lamborghinis.
Lhe conto
sobre o prêmio tartaruga stalinista, que lhe passou despercebido na visita ao
nosso museu favorito, para que o guarde na memória. Me entrega o monumento
revolucionário, seu drama e emoções que não conheci, mas que quase o fizeram
chorar. Trocas de passados, trocas.
Nessa
mágica dos encontros, nosso Zumbi cospe em Leopoldos. Bolsonaros não matam mais
a História na Guatemala. E adolescentes podem conhecer o passado por doutores
que não se sentem diminuídos em seus status por preferí-los aos pós-graduandos.
Não
sabemos de números, por isso escolhemos a História, ele disse. Não sabemos de
números, erramos, e o que era uma pequena fração pareceu número inteiro, digo
eu.
E
suas mãos frias, suas costas tortas, seu hálito de cigarros, seus milhares de
quilômetros, viraram todos lindos adornos de um caso de amor imaginado.
E a
imaginação transforma uma noite em uma vida.
Mariana Penna, 2019.