quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O pastor e os ateus


Setembro de 2013: Há cerca de 6 meses uma centena de famílias sem casa própria ocupava um terreno abandonado por uma empresa na grande BH, em Contagem.
Setembro de 2013: um grupo heterogêneo de apoiadores locais organizou um encontro e convocou vários grupos para participarem, alguns de outros estados inclusive, a fim de ampliar as bases de solidariedade para com aquela luta por moradia.
Educação libertária, luta antiprisional, anarquismo social, feminismo, ecologia, dentre outros temas, constavam da grade do encontro. Além disso, mesmo excluído do cartaz do evento, estava programado também um culto religioso. “Um culto?”, questionavam os convidados aos organizadores do evento, que apoiavam a ocupação sem, contudo, serem moradores. “É, um culto, mas ninguém precisa ir, é uma coisa mais deles” – respondiam referindo-se aos moradores da ocupação. E acrescentavam dizendo ser possível até aproveitar o horário do culto para discutir articulação política entre as organizações e movimentos presentes.
- Mas tem certeza que não vai ficar feio se a gente não for? – perguntou uma militante vinda da Bahia.
- Não – respondeu o apoiador – eu pessoalmente nem me sentiria bem, pareceria hipócrita da minha parte, afinal sou ateu, como um monte de gente aqui.
Com isso, o impasse parecia resolvido, ao menos para os militantes. Já o pastor e moradores envolvidos na organização do culto, contavam ainda com a presença dos visitantes. Em verdade, aquele culto havia sido pensado justamente para recebê-los. Mas os anfitriões teriam esperado sozinhos e em vão, não fosse uma eventualidade nada agradável ter abalado a relação entre os moradores e aqueles forasteiros em tempo recorde. Um grupo, que se considera uma espécie de vanguarda artística radical, colocava em prática seu “pornoterrorismo”, performances sexuais extravagantes, escatológicas e muitas vezes violentas, realizadas mesmo à luz do dia e em qualquer lugar da ocupação, aos olhos de quem circulasse no meio.
A tensão era evidente, moradores reclamavam, sentiam-se afrontados, e muitos militantes arrancavam os cabelos sem saber o que fazer para controlar os “radicais estéticos”, ou ao menos para evitar serem confundidos com eles. O pastor reforçou o convite para o culto. Dado o contexto, quando este não estava mais presente, o assunto voltou a circular nas conversas daquela gente que desejava mudar o mundo:
- Vamos para o culto! É o mínimo que podemos fazer nessa situação para aliviar um clima tão pesado e amenizar o desconforto que essa galera provocou aos moradores! - insistia a militante da Bahia.
- Também acho! – concordou um militante de SP, quem, seguido por companheiras e companheiros de MG, RJ e SC, passou a discutir os termos dessa participação. Em decorrência, ficou claro que ninguém precisaria simular crença, orar, rezar, nada disso, apenas estariam presentes em respeito aos moradores.
Era a hora do culto, foram todos para a praça construída pelos ocupantes. O pastor e várias senhoras organizavam os bancos improvisados para receber os visitantes, que aos poucos iam se acomodando em formato de meia lua.
Todos sentados, o pastor começa seu sermão:
- Queridos amigos, irmãs, irmãos e convidados de vários lugares do Brasil, eu gostaria de começar esse culto fazendo a vocês a seguinte pergunta: quem aqui acredita em Deus?
Todos os moradores ali presentes levantaram as mãos, dentre os militantes, a maioria com as mãos abaixadas. Estes últimos olhavam entre si, desconfortáveis. Alguns, internamente, se questionavam pensando que merda estavam fazendo ali. Outros olhavam para baixo, sem saber se permaneciam ou iam embora por medo do que mais poderia vir daquele culto para o qual vieram um tanto a contragosto. Em suma, o desconforto era geral entre os militantes, mas esta tortura durou poucos segundos, e o pastor continuou:
- E, agora, eu queria perguntar a vocês outra coisa: quem aqui acredita no amor, na força do amor para mudar as coisas?
De imediato, todas as mãos se levantaram. Houve uma quebra da ordem anterior e, assim, moradores e militantes agora se viam e se confraternizavam institivamente com alguns olhares simpáticos e sorrisos, ainda discretos. O pastor continuou, mirando especialmente os visitantes:
- Pois bem, meus amigos, o que vocês chamam de amor, eu chamo de Deus, de Jesus Cristo. Sendo assim, nós todos acreditamos na mesma coisa, nós todos estamos unidos numa mesma luta para mudar o mundo, para mudar a realidade injusta. Meu Deus disse que só há dois mandamentos: amar a Deus, que como eu disse, para mim é o amor, e amar ao próximo como a si mesmo. Por isso, meu Deus não quer o ódio, a intolerância, ele quer a união, o respeito, o amor. E a religião em seu sentido original é isso, é religar. Religar as pessoas a Deus, ao amor, e assim religar as pessoas entre si. Por isso, irmãs, irmãos, companheiras, companheiros, eu convido a todos vocês para a comunhão.
Nesse momento, algumas senhoras se levantaram e, seguidas pelos olhos curiosos dos convidados, foram e voltaram carregadas de bandejas e cestas com frutas e pães. Enquanto elas traziam alimentos, o pastor dava prosseguimento ao culto:
-Vamos agora comungar, ou seja, dividir, colocar em comum esses alimentos, esses frutos da nossa terra, esses frutos do trabalho humano. E aproveito, nesse momento, para lembrar que tanto cristãos como os companheiros da militância comungamos, cada um a sua maneira. É só lembrar o significado da palavra companheiro que vocês usam para chamar uns aos outros, não é? – perguntava enquanto lhe sorriam alguns companheiros de militância – Companheiro é aquele com quem a gente divide o pão. Assim sendo, convido a todos para comungar como irmãos e compartilhar como companheiros.
Inflamados de alegria, cristãos, socialistas libertários ou estatistas, todos sorriam, se cumprimentavam e comiam o que as moradoras lhes ofertavam.  O tensionamento se foi. Ali, eram uma comunidade. Os militantes sequer se incomodaram quando indivíduos da “vanguarda artística” passaram por eles com olhares jocosos, debochados. Já não importava, estavam em paz; estavam unidos; estavam religados; estavam em religião, ateus, agnósticos e cristãos.   





                                                                                 *Baseado em fatos reais.
                                                              ** Dedicado ao pastor Isaías da Ocupação Guarani Kaiowá.
                                                                                    


                                                                                                  Mariana Penna, 2015

sábado, 9 de maio de 2015

Ela não é fofa




Ela é uma mulher incomum, eles sabem disso.
Ela é independente, tem seu trabalho, mora sozinha, paga suas contas.
Ela é consciente, militante, sabe discutir política e se exalta como homem na mesa de bar.
Ela zoa, ela bebe, não abre mão de um bom rolé e nem por isso deixa de cumprir suas obrigações e compromissos de trabalho e militância.
Ela é foda, eles sabem disso.
Ela é livre, sabe separar sexo de sentimentos.
Ela é desinibida, fala de putaria como quem fala do cardápio do almoço.
Ela é transparente, parece não guardar segredos
Ela é amiga e sempre se dispõe a ajudar quem precisa.
Ela é animada, leva todo mundo para a bagunça.
Ela é divertida, ela é escrachada, é sem pudor.
Ela ocasionalmente se permite viver amizades coloridas.
Ela é foda, ela é chapa, ela é brother. Eles sabem disso, principalmente quando estão solteiros.
Ela é corajosa, anda em qualquer beco pelas madrugadas.
Ela é destemida, mesmo depois de uma bebedeira, sempre volta sozinha para casa.
Eles gostam disso, de uma mulher que não exige cuidados especiais nem proteção.
Ela é responsa, ela é foda.
Ela tem um jeito forte, não veste roupas sensuais, é um pouco bruta talvez. Eles elogiam isso, afinal ela é profunda, mais intelecto do que carne.
Ela é despojada, não é fútil, não fala sobre, nem se ocupa com depilação, batom, perfumes, esmaltes, maquiagem. Eles acham ela um exemplo de mulher e questionam porque as outras perdem tanto tempo com essas “bobeiras”.
Ela é foda, é responsa, é brother. Eles sabem disso, mas elogiam com o olhar as meninas mais delicadas, arrumadas, perfumadas e femininas.
Ela faz sexo quando quer, não se faz de princesa, nunca fez charme de negar no primeiro encontro.
Ela é “prafrentex”, parece não sentir ciúmes, não ter mimimi. Eles sabem disso e não se sentem inibidos em apresentar a padrão panicat super arrumada pras amizades, pouco depois de uma noite de prazeres com sua amiga foda, sem sentimentalismos, nem testemunhas. Eles sabem que ela não se afeta, afinal, ela é foda, ela é chapa.
Ela é forte, eles pensam que ela é coberta de aço, intransponível à dor, parecem ignorar que ela tem sensibilidades e sentimentos. Ela é foda, mas no seu raro tempo livre se emociona com filmes românticos.
Ela é foda, eles sabem disso, mas ela não é fofa.

Mariana Penna, 2015.


terça-feira, 7 de abril de 2015

Adeus, muso!


Mais um dia de trabalho. Atender telefonemas e papéis... papéis para todo lado: históricos escolares, comunicações de faltas aos responsáveis, encaminhamentos ao conselho tutelar, notas para serem lançadas e tantos outros que no momento já nem se lembrava. Quem diz que trabalho de secretaria é fácil, não sabe do que está falando. A menos que se faça um trabalho porco, essa função burocrática dá realmente muita canseira... e estresse! Mas, no fundo, não tinha do que se queixar. Primeiro porque tinha um bom emprego, se comparado com a maioria das pessoas que conhecia. Talvez o melhor entre seus parentes. É certo que seu primo Davi tinha um rendimento bem mais significativo com seu trabalho em marcenaria, mas Suzana trabalhava seis horas por dia e tinha a tranquilidade de não temer os avanços da concorrência. Seus ganhos e seus gastos eram perfeitamente previsíveis, não tinha muito porque reclamar se comparada às outras mulheres da sua família: donas de casa, empregadas domésticas, manicures e cabeleireiras. Suzana tinha o que nenhuma delas havia conseguido ainda: independência.
Desde os 21 anos, seis meses após conseguir esse emprego, a jovem rumou para uma quitinete próxima ao trabalho. Foi juntando uma graninha e com o passar dos anos e dos modestos triênios, conseguiu comprar uma casa no morro logo atrás. Era uma casa simples, mas era sua, toda e somente sua! Preferiu morar mais perto do trabalho do que da família, não que não gostasse de sua família, muito pelo contrário, mas não queria ter sua vida controlada, especialmente sua vida sexual. Tinha 35 anos agora, solteiríssima e satisfeita com isso, não sabia até quando, mas até o momento estava bem.
Nem sempre sua casa estava limpa e arrumada. Decerto que nunca estava completamente limpa ou arrumada. Mas havia algo de encantador em sua decoração, algo que fazia Suzana sentir-se a vontade e tranquila tão logo abria a porta e adentrava seu confortável abrigo. A grande paixão de Suzana era o desenho. Ainda na escola gostava de rascunhar em seus cadernos as obras visuais da sua imaginação. Não à-toa foi censurada e advertida algumas vezes no meio das aulas por sua atenção desviada. Preferia as aulas de geometria, já que as de artes nunca lhe serviram para aprimorar a sua própria arte. Atualmente já quase nem lembrava do que aprendeu naqueles cursos inexpressivos. Já as aulas de geometria lhe serviram para expressar melhor as profundidades nos desenhos. Ela se lembrava bem do dia em que a paciente professora de geometria, ao lhe flagrar desenhando no meio da aula, ao invés de lhe advertir, lhe deu dicas para melhorar as noções de perspectiva. Boa gente aquela senhora, se perguntava como ela deveria estar nos dias atuais... certamente aposentada, pois já seria idosa.
Apesar de desenhar muito, não era de mostrar suas artes para ninguém. Era como um pequeno tesouro particular. Lhe entristeceria que outro não apreciasse o fruto do seu trabalho, por isso, seus desenhos, tal como sua casa, eram só seus. E assim, ambos se completavam. Cada novo desenho que ela fazia e que julgava digno, ia para a parede. E como seus desenhos expressavam sua vida, seu estado de espírito nos mais variados momentos, sua casa era como que uma autobiografia pictórica.

Chegar em casa se tornava um ritual sublime. Suzana olhava para aquelas paredes repletas de desenhos, como quem olha para o mar, ou mesmo para uma imagem de um santo. Entrava num estado de desapego corporal, uma espécie de mergulho na mente, quando você pouco se dá conta de que há algo para além de seu pensamento, assim, se envolve de tal forma, que caso esteja andando na rua, isto pode lhe proporcionar um belo de um tropeço. Mas dentro de casa, de frente para o mar ou sentada em uma igreja, não há este risco. Quase não abria as janelas de casa, pois sentia que ali dentro havia mais inspiração para sonhar acordada do que a vista de fora poderia lhe proporcionar.
E sonhar acordada era uma diversão recorrente, até quando estava fora de seu templo pessoal. Estava então bem aérea naquela terça-feira, quando chegou ao trabalho. Antes mesmo de se aproximar da secretaria foi surpresa por uma figura masculina que parecia ter saltado diretamente de seus sonhos para a realidade. Tratava-se de Flávio, ajudante de pedreiro que estava trabalhando na reforma da biblioteca. Após cumprimenta-lo e depois de discretamente perguntar aos colegas de quem se tratava, Suzana passou o dia a ter seus pensamentos invadidos pela figura do estranho. Tornou-se uma fantasia, um fetiche que ela precisava materializar.
Nos dias seguintes caprichou mais no visual, buscou situações para puxar assunto, e, chegada a famigerada sexta-feira, sacou toda sua capacidade cara-de-pau bem do fundo do espírito e chamou o belo moço para sair. Avaliava grande a possibilidade de um toco, mas aprendera, não fazia tanto tempo, que o “não” já se tem antes da pergunta, o “sim” só se alcança quem se dispõe a arriscar. Portanto, não há nada a perder ao assumir essa lógica. Ela assumiu, e ganhou. Foi para casa, se arrumou com todo o cuidado que a situação exigia. Encontrou-o no início da noite no bar combinado. Ele estava claramente tímido, ela também, mas sabia que era necessário disfarçar, o humor ajudava. Sentaram numa mesa de dois lugares. Flávio pouco falava, parecia nada a vontade... normal. O desconforto diminuía conforme iam baixando as garrafas de cerveja, e assim o belo e reservado rapaz se abria pouco a pouco com a ajuda da bebida que não sendo propriamente dionisíaca, tinha em seus efeitos o explícito parentesco com àquela que provia as bênçãos sagradas do deus grego. E o resultado foi uma linda noite. Mais que um sexo casual, as paredes da casa de Suzana testemunharam o encontro de duas pessoas, que antes estranhas, passavam agora a conhecer aspectos significativos uma da outra. Flávio admirou, com raro apreço, suas paredes decoradas, perdeu minutos e minutos observando cada desenho, com sincera dedicação. Elogiou-os com honestidade e Suzana sentiu uma satisfação dificilmente descritível em palavras. Seus desenhos eram como uma expressão exterior da autoimagem que ela produziu, saber que outras pessoas os estimavam, era sentir-se ela própria um ser digno de valor.  
E um caso amoroso com uma dinâmica um tanto quanto fluida se seguiu àquela noite. Suzana não tinha previamente nem queria depositar expectativas, mas sentimentos surgem quando menos se espera.
Os meses que seguiram àquele primeiro encontro foram regados de ânimo e uma disposição enorme floriu a vida da moça. O trabalho parecia mais agradável e ao chegar em casa ideias novas estimulavam as mais belas criações artísticas. Sentia que desde que começou a se relacionar com Flávio, seu ânimo para desenvolver coisas interessantes era outro. Entendeu concretamente, pela sua experiência, porque pintores e escritores buscavam tão ardorosamente por suas musas. Percebeu que, por mais fluido e sem perspectiva pudesse ser aquele relacionamento, uma coisa de fato Flávio lhe proporcionava: inspiração.
Mas o amante que nada lhe cobrava e nada lhe exigia, por outro lado não era do tipo que muito dividia. Se no encontro inicial o fator etílico lhe permitiu abrir-se em algum grau, com o passar do tempo, o silêncio disfarçado em sorrisos e em algumas poucas palavras carinhosas deu a tônica da pretensamente leve forma de agir do rapaz. Mas era uma “insustentável leveza” que o tempo foi revelando. E ela percebeu que qualquer que fosse o inferno que ele carregava por dentro, Flávio o guardaria tão somente para si. Ele não estava disposto a se expor, nem em quadros, nem em poesias, nem em palavras simples numa conversa de bar. Ele era um mistério, talvez para si mesmo. Seria isso o que havia nele que tanto a inspirava? Não houve tempo hábil para tirar a prova real. Um belo dia, ele sumiu. Já fazia tempo que a obra na escola havia sido concluída, portanto, ele não precisava mais passar por lá. Não respondeu mais as poucas e ocasionais mensagens que Suzana enviava. Ela não fez nenhuma questão de insistir em contatar quem já não desejava seu contato. Ele tinha seu endereço, telefones e perfis em redes sociais, mas não quis lhe procurar.
Resignar-se é um ato de sabedoria frente o imutável. Suzana soube agir assim. Mas o vazio veio, um vazio horrível de aceitar, principalmente porque o pior efeito do vazio foi levar todo e qualquer resquício de inspiração para algum lugar bem distante onde Suzana não podia mais alcançar. Ficou triste, mas não uma tristeza desesperadora, foi uma tristeza típica da desilusão, do desencantamento. Meses e mais meses se seguiram, pegava o lápis, olhava para o papel, olhava para o teto e até para os outros desenhos, mas nada, nada de ideia. Forçava reproduzir qualquer natureza morta do ambiente, mas ficava horrível. Desistiu.
...
Faltava pouco para fazer um ano desde que se comunicou pela última vez com Flávio, pensava bem menos nele. Dedicava-se com mais entusiasmo aos amigos e ao trabalho. Era sábado, dormia, não precisava de despertador, pois não teria nenhum compromisso. Abriu os olhos e percebeu que, por mais que a cortina cobrisse, a luminosidade externa era intensa. Preguiçou mais um pouco na cama, mesmo sentindo-se completamente descansada e despreocupada. Esticou-se e rolou calmamente de um lado para outro. Era tudo tão confortável, sentia-se tão confortável! Pensava que seria de manhã e como se surpreendeu ao ver 14:03 no relógio do seu celular! Mas não havia razão para desesperar, não tinha nenhum compromisso, assim, logo relaxou. E antes de tomar um café, arrumar a cama, ou mesmo lavar o rosto, pegou uma folha bem grande, e pôs a desenhar formas e figuras que remetiam de muitas e variadas formas ao seu recente caso de amor. O bar se misturava aos quadros de sua parede que eram levados por um mar de cerveja derramada de uma mesa para dois e que se transformava em seu lençol a cobrir, na cama de casal, um copo vazio. Ao lado, na mesinha de cabeceira, um bilhete sobre o qual um lápis repousava: “Adeus, muso!”. Já era tarde da noite quando após algumas pausas para fazer refeições, Suzana concluiu o desenho. Olhava-o diversas vezes com orgulho. “Ficou definitivamente lindo!”, pensava.
Nas semanas que se seguiram, Suzana sentia uma vontade absurda de desenhar e começou a fazer isto toda vez que chegava em casa. Os temas os mais variados, os resultados quase sempre a satisfaziam. Concluiu que, enfim, havia chegado a hora, fez cópias de todos os desenhos e com eles criou uma espécie de caderno, tipo esses que os tatuadores usam para sugerir opções de tatuagens. Era uma quinta-feira, sabia que a professora de artes estaria na escola. Chamava-se Daniele, e era uma professora jovem e muito entusiasmada, Suzana gostava de conversar com ela, pois tinha uma mente aberta e um repertório imenso de papos. Na hora do intervalo, ela tomou coragem, chamou Daniele para a secretaria e lhe mostrou o caderno. A reação positiva da professora, empolgou-a de tal forma que permitiu que a colega mostrasse seus trabalhos para os outros professores e funcionários da escola. Foi o assunto do dia! Muitíssimo elogiada, Suzana recebeu o apreço dos colegas de trabalho como o maior presente que alguém poderia ganhar. Na semana seguinte, Daniele lhe propôs um desafio novo: apresentar alguns de seus trabalhos numa feira de artes com os alunos das turmas em que a jovem professora lecionava. A secretária topou e assim abriu seu mundo privativo para toda a comunidade escolar. Foi emocionante ver tantos adolescentes elogiarem e comentarem seus quadros. 
Mariana Penna, 2015.

terça-feira, 17 de março de 2015

Juliana e os gatos



Juliana tem 47 anos e trabalha num restaurante de preço popular no centro do Rio de Janeiro. Não é garçonete, pois sua timidez a impossibilita. Ajuda na cozinha e faz, principalmente, a limpeza do local. Fala pouco, mas não por falta de vontade. As vezes enquanto ouve seus colegas papearem, intervém mentalmente. Opina e comenta, mas só para si mesma, não tem coragem de externalizar. Só responde a algo quando lhe foi diretamente perguntado. Nunca puxa assunto. Imagina como seria bom se não tivesse esse bloqueio. Mas, no mundo real, não consegue.
Anda sempre olhando para o chão. Tem medo de tropeçar, tem medo de ver alguém olha-la com desdém, que lhe achem estranha em seu caminhar. Fica nervosa... tropeça, mesmo olhando para o chão. Seu corpo é encurvado, seu cabelo sempre preso, seu sorriso nunca mostra os dentes.
Jamais conheceu homem algum, mas assiste muitas novelas. Mora ali pela Gamboa, numa casa de cortiço. Uma sala-quarto-cozinha e um banheiro. Sem janelas, só um pequeno basculante com abertura para o corredor do prédio. Mas sua porta tem uma parte de vidro que abre e é por ali que entram seus gatos. São eles o conforto do dia a dia de Juliana. Mesmo com seu orçamento apertado, ela se dedica a atender aos caprichos dos bichanos. Sente que só com eles realiza de fato sua humanidade, com seus pares humanos não, sente-se um espectro, uma alma penada a vagar em meio à multidão.
Mas erra quem pensa que a relação de Juliana e seus gatos é isenta de turbulências e contradições. Diferentes dos cachorros, que em geral dedicam uma suposta lealdade absoluta aos humanos, independente da forma como eles lhes tratam, os gatos precisam ser constantemente reconquistados. E é nesse desafio de conquistar, manter a conquista e reconquistar os bichanos, que Juliana dá sentido a sua vida atualmente.
Tudo começou com Fifo há uns dois anos atrás. Antes disso Juliana não tinha gatos. Achava-os bichos estranhos, frios, distantes e que por mais que ela se esforçasse, nunca lhes dariam atenção. Mas Fifo mudou tudo. Quando esse gatinho preto passou por ela, Juliana o achou uma fofura. Quis mexer com ele, mesmo achando que o esforço seria em vão, como sempre o era com os outros gatos. Mas Fifo retribuiu, passou a visita-la. Ela o alimentava, e, em pouco tempo, estava ele em sua casa. Que alegria era ter aquele gato meigo e grudento no seu colo nos momentos de descanso após o trabalho. Eram longas as horas que Juliana vendia ao seu patrão e a companhia de um gato virou necessidade para colorir sua vida fora do mundo cinza com cheiro de frituras e desinfetante barato.
Mas como Fifo passeava demais e as vezes sumia por um tempo, aquela senhora solitária passou a buscar um novo amiguinho. Achou um lindo gatinho com olhos cor de mel! Na hora mesmo pensou: ele tem que ser meu! Se aproximou, ele se assustou, mas com um pouco de insistência, ele se entregou ao afago. Dessa vez pulou a fase da conquista e levou logo o felino para sua casa, na marra.


Era tão fofinho, mas livre como o anterior. Por isso Juliana não se sentia ainda completa emocionalmente, estava insatisfeita. Então apareceu uma gata. Essa veio de livre e espontânea vontade. Começou a sondar sua porta e a roubar comida. Até que um belo dia entrou e sentiu-se em casa. Muito brincalhona, mal deixava Juliana dormir em paz, vinha sempre barulhar em sua cama. No entanto, seus sumiços eram bem mais notáveis do que o daqueles que a antecederam.
E sua casa não parou mais de ser frequentada pela bichanada! O próximo foi Dadinho. Ele andava solto pelo cortiço, comia um pouco aqui e acolá, mas depois que Juliana o encontrou, ele pareceu se encontrar. Parecia calmo, ficava relaxado e se esticava sem pressa no colchão. Era raro ele sair de casa e todo dia quando ela voltava do trabalho lá estava aquele cinzinha a olha-la com satisfação à porta de casa.
Devia estar satisfeita, mas seu coração ainda tinha espaço para mais bichinhos de estimação. E, portanto, continuou a recebe-los. Seus vizinhos começaram a reclamar pela quantidade demasiada de gatos. Juliana sentiu-se mal, não queria incomodar ninguém, mas também não conseguia viver sem seus animaizinhos. Ela não se sente uma pessoa acumuladora, não é de guardar nada. A única coisa que gosta de acumular é o carinho e o sentimento por aqueles bichinhos, mas tem medo que as pessoas não compreendam esse seu excesso. Dizem que é estranho uma pessoa viver rodeada de tantos animais de estimação. Mas o que as pessoas não podiam entender era o quanto seu espírito carente de atenção precisava daquelas companhias calorosas para superar o medo das horas vazias e da solidão.
Mariana Penna, 2014.