Mais um dia de trabalho.
Atender telefonemas e papéis... papéis para todo lado: históricos escolares,
comunicações de faltas aos responsáveis, encaminhamentos ao conselho tutelar,
notas para serem lançadas e tantos outros que no momento já nem se lembrava.
Quem diz que trabalho de secretaria é fácil, não sabe do que está falando. A
menos que se faça um trabalho porco, essa função burocrática dá realmente muita
canseira... e estresse! Mas, no fundo, não tinha do que se queixar. Primeiro
porque tinha um bom emprego, se comparado com a maioria das pessoas que
conhecia. Talvez o melhor entre seus parentes. É certo que seu primo Davi tinha
um rendimento bem mais significativo com seu trabalho em marcenaria, mas Suzana
trabalhava seis horas por dia e tinha a tranquilidade de não temer os avanços
da concorrência. Seus ganhos e seus gastos eram perfeitamente previsíveis, não
tinha muito porque reclamar se comparada às outras mulheres da sua família:
donas de casa, empregadas domésticas, manicures e cabeleireiras. Suzana tinha o
que nenhuma delas havia conseguido ainda: independência.
Desde os 21 anos, seis meses
após conseguir esse emprego, a jovem rumou para uma quitinete próxima ao
trabalho. Foi juntando uma graninha e com o passar dos anos e dos modestos
triênios, conseguiu comprar uma casa no morro logo atrás. Era uma casa simples,
mas era sua, toda e somente sua! Preferiu morar mais perto do trabalho do que
da família, não que não gostasse de sua família, muito pelo contrário, mas não
queria ter sua vida controlada, especialmente sua vida sexual. Tinha 35 anos
agora, solteiríssima e satisfeita com isso, não sabia até quando, mas até o
momento estava bem.
Nem sempre sua casa estava
limpa e arrumada. Decerto que nunca estava completamente limpa ou arrumada. Mas
havia algo de encantador em sua decoração, algo que fazia Suzana sentir-se a
vontade e tranquila tão logo abria a porta e adentrava seu confortável abrigo. A
grande paixão de Suzana era o desenho. Ainda na escola gostava de rascunhar em
seus cadernos as obras visuais da sua imaginação. Não à-toa foi censurada e
advertida algumas vezes no meio das aulas por sua atenção desviada. Preferia as
aulas de geometria, já que as de artes nunca lhe serviram para aprimorar a sua própria
arte. Atualmente já quase nem lembrava do que aprendeu naqueles cursos
inexpressivos. Já as aulas de geometria lhe serviram para expressar melhor as
profundidades nos desenhos. Ela se lembrava bem do dia em que a paciente
professora de geometria, ao lhe flagrar desenhando no meio da aula, ao invés de
lhe advertir, lhe deu dicas para melhorar as noções de perspectiva. Boa gente aquela senhora, se perguntava como ela deveria estar nos
dias atuais... certamente aposentada, pois já seria idosa.
Apesar de desenhar muito,
não era de mostrar suas artes para ninguém. Era como um pequeno tesouro
particular. Lhe entristeceria que outro não apreciasse o fruto do seu trabalho,
por isso, seus desenhos, tal como sua casa, eram só seus. E assim, ambos se
completavam. Cada novo desenho que ela fazia e que julgava digno, ia para a
parede. E como seus desenhos expressavam sua vida, seu estado de espírito nos
mais variados momentos, sua casa era como que uma autobiografia pictórica.
Chegar em casa se tornava um
ritual sublime. Suzana olhava para aquelas paredes repletas de desenhos, como
quem olha para o mar, ou mesmo para uma imagem de um santo. Entrava num estado
de desapego corporal, uma espécie de mergulho na mente, quando você pouco se dá
conta de que há algo para além de seu pensamento, assim, se envolve de tal
forma, que caso esteja andando na rua, isto pode lhe proporcionar um belo de um
tropeço. Mas dentro de casa, de frente para o mar ou sentada em uma igreja, não
há este risco. Quase não abria as janelas de casa, pois sentia que ali dentro
havia mais inspiração para sonhar acordada do que a vista de fora poderia lhe
proporcionar.
E sonhar acordada era uma
diversão recorrente, até quando estava fora de seu templo pessoal. Estava então
bem aérea naquela terça-feira, quando chegou ao trabalho. Antes mesmo de se
aproximar da secretaria foi surpresa por uma figura masculina que parecia ter
saltado diretamente de seus sonhos para a realidade. Tratava-se de Flávio,
ajudante de pedreiro que estava trabalhando na reforma da biblioteca. Após
cumprimenta-lo e depois de discretamente perguntar aos colegas de quem se
tratava, Suzana passou o dia a ter seus pensamentos invadidos pela figura do estranho.
Tornou-se uma fantasia, um fetiche que ela precisava materializar.
Nos dias seguintes caprichou
mais no visual, buscou situações para puxar assunto, e, chegada a famigerada
sexta-feira, sacou toda sua capacidade cara-de-pau bem do fundo do espírito e
chamou o belo moço para sair. Avaliava grande a possibilidade de um toco, mas
aprendera, não fazia tanto tempo, que o “não” já se tem antes da pergunta, o
“sim” só se alcança quem se dispõe a arriscar. Portanto, não há nada a perder
ao assumir essa lógica. Ela assumiu, e ganhou. Foi para casa, se arrumou com
todo o cuidado que a situação exigia. Encontrou-o no início da noite no bar
combinado. Ele estava claramente tímido, ela também, mas sabia que era
necessário disfarçar, o humor ajudava. Sentaram numa mesa de dois lugares.
Flávio pouco falava, parecia nada a vontade... normal. O desconforto diminuía
conforme iam baixando as garrafas de cerveja, e assim o belo e reservado rapaz
se abria pouco a pouco com a ajuda da bebida que não sendo propriamente
dionisíaca, tinha em seus efeitos o explícito parentesco com àquela que provia
as bênçãos sagradas do deus grego. E o resultado foi uma linda noite. Mais que
um sexo casual, as paredes da casa de Suzana testemunharam o encontro de duas pessoas,
que antes estranhas, passavam agora a conhecer aspectos significativos uma da
outra. Flávio admirou, com raro apreço, suas paredes decoradas, perdeu minutos
e minutos observando cada desenho, com sincera dedicação. Elogiou-os com
honestidade e Suzana sentiu uma satisfação dificilmente descritível em
palavras. Seus desenhos eram como uma expressão exterior da autoimagem que ela produziu,
saber que outras pessoas os estimavam, era sentir-se ela própria um ser digno
de valor.
E um caso amoroso com uma
dinâmica um tanto quanto fluida se seguiu àquela noite. Suzana não tinha
previamente nem queria depositar expectativas, mas sentimentos surgem quando
menos se espera.
Os meses que seguiram àquele
primeiro encontro foram regados de ânimo e uma disposição enorme floriu a vida
da moça. O trabalho parecia mais agradável e ao chegar em casa ideias novas
estimulavam as mais belas criações artísticas. Sentia que desde que
começou a se relacionar com Flávio, seu ânimo para desenvolver coisas interessantes
era outro. Entendeu concretamente, pela sua experiência, porque pintores e
escritores buscavam tão ardorosamente por suas musas. Percebeu que, por mais
fluido e sem perspectiva pudesse ser aquele relacionamento, uma coisa de fato
Flávio lhe proporcionava: inspiração.
Mas o amante que nada lhe
cobrava e nada lhe exigia, por outro lado não era do tipo que muito dividia. Se
no encontro inicial o fator etílico lhe permitiu abrir-se em algum grau, com o
passar do tempo, o silêncio disfarçado em sorrisos e em algumas poucas palavras
carinhosas deu a tônica da pretensamente leve forma de agir do rapaz. Mas era
uma “insustentável leveza” que o tempo foi revelando. E ela percebeu que
qualquer que fosse o inferno que ele carregava por dentro, Flávio o guardaria
tão somente para si. Ele não estava disposto a se expor, nem em quadros, nem em
poesias, nem em palavras simples numa conversa de bar. Ele era um mistério,
talvez para si mesmo. Seria isso o que havia nele que tanto a inspirava? Não
houve tempo hábil para tirar a prova real. Um belo dia, ele sumiu. Já fazia
tempo que a obra na escola havia sido concluída, portanto, ele não precisava
mais passar por lá. Não respondeu mais as poucas e ocasionais mensagens que
Suzana enviava. Ela não fez nenhuma questão de insistir em contatar quem já não
desejava seu contato. Ele tinha seu endereço, telefones e perfis em redes
sociais, mas não quis lhe procurar.
Resignar-se é um ato de
sabedoria frente o imutável. Suzana soube agir assim. Mas o vazio veio, um
vazio horrível de aceitar, principalmente porque o pior efeito do vazio foi
levar todo e qualquer resquício de inspiração para algum lugar bem distante
onde Suzana não podia mais alcançar. Ficou triste, mas não uma tristeza
desesperadora, foi uma tristeza típica da desilusão, do desencantamento. Meses
e mais meses se seguiram, pegava o lápis, olhava para o papel, olhava para o
teto e até para os outros desenhos, mas nada, nada de ideia. Forçava reproduzir
qualquer natureza morta do ambiente, mas ficava horrível. Desistiu.
...
...
Faltava pouco para fazer um
ano desde que se comunicou pela última vez com Flávio, pensava bem menos nele.
Dedicava-se com mais entusiasmo aos amigos e ao trabalho. Era sábado, dormia,
não precisava de despertador, pois não teria nenhum compromisso. Abriu os olhos
e percebeu que, por mais que a cortina cobrisse, a luminosidade externa era
intensa. Preguiçou mais um pouco na cama, mesmo sentindo-se completamente
descansada e despreocupada. Esticou-se e rolou calmamente de um lado para
outro. Era tudo tão confortável, sentia-se tão confortável! Pensava que seria
de manhã e como se surpreendeu ao ver 14:03 no relógio do seu celular! Mas não
havia razão para desesperar, não tinha nenhum compromisso, assim, logo relaxou.
E antes de tomar um café, arrumar a cama, ou mesmo lavar o rosto, pegou uma
folha bem grande, e pôs a desenhar formas e figuras que remetiam de muitas e
variadas formas ao seu recente caso de amor. O bar se misturava aos quadros de
sua parede que eram levados por um mar de cerveja derramada de uma mesa para
dois e que se transformava em seu lençol a cobrir, na cama de casal, um copo
vazio. Ao lado, na mesinha de cabeceira, um bilhete sobre o qual um lápis
repousava: “Adeus, muso!”. Já era tarde da noite quando após algumas pausas para
fazer refeições, Suzana concluiu o desenho. Olhava-o diversas vezes com
orgulho. “Ficou definitivamente lindo!”, pensava.
Nas semanas que se seguiram,
Suzana sentia uma vontade absurda de desenhar e começou a fazer isto toda vez
que chegava em casa. Os temas os mais variados, os resultados quase sempre a
satisfaziam. Concluiu que, enfim, havia chegado a hora, fez cópias de todos os
desenhos e com eles criou uma espécie de caderno, tipo esses que os tatuadores
usam para sugerir opções de tatuagens. Era uma quinta-feira, sabia que a
professora de artes estaria na escola. Chamava-se Daniele, e era uma professora
jovem e muito entusiasmada, Suzana gostava de conversar com ela, pois tinha uma
mente aberta e um repertório imenso de papos. Na hora do intervalo, ela tomou
coragem, chamou Daniele para a secretaria e lhe mostrou o caderno. A reação
positiva da professora, empolgou-a de tal forma que permitiu que a colega
mostrasse seus trabalhos para os outros professores e funcionários da escola. Foi
o assunto do dia! Muitíssimo elogiada, Suzana recebeu o apreço dos colegas de
trabalho como o maior presente que alguém poderia ganhar. Na semana seguinte,
Daniele lhe propôs um desafio novo: apresentar alguns de seus trabalhos numa
feira de artes com os alunos das turmas em que a jovem professora lecionava. A
secretária topou e assim abriu seu mundo privativo para toda a comunidade
escolar. Foi emocionante ver tantos adolescentes elogiarem e comentarem seus
quadros.
Mariana Penna, 2015.