sábado, 9 de fevereiro de 2019

A menina que via a morte


Era uma menina que via a Morte. Quando pequena ela não sabia bem o que era aquilo, mas a Morte vivia passeando ao seu redor. Viu o espectro se aproximar dos bichos e depois percebeu que eles morriam. Viu rotineiramente ela se aproximar de sua avó que parecia respirar mais cansada toda vez que tal figura etérea dela se aproximava. A idosa ia ficando mais fraca até o derradeiro dia em que a menina viu a morte lhe sugar todas as forças. Sua avó faleceu. A conexão era lógica e a partir de então a menina passou a temer aquele monstro azul desesperadamente, como no pior pesadelo. Sim, a morte é azul e não preta como nos filmes. É azul como o céu em sua imensidão e que se reflete no mar. E assim como o azul se faz o tempo todo presente, também se fazia onipresente a morte na vida da menina, que passou a gritar em desespero toda vez que a via. E o pior é que assim como fazia com todos os seres, a Morte também vinha de tempos em tempos lhe sugar, sugava um pouquinho e ia embora. Não adiantavam seus protestos, a morte era a mais blasé das criaturas. Estapear-lhe era vão, a morte perpassava sem obstáculos todas as matérias e nelas todas dava, invariavelmente, a sua desagradável sugadinha, puxando para seu corpo etéreo azul o ar vermelho que exalava dos seres vivos.
Era vermelha a substância que ela sugava. Com o passar do tempo, a menina passou a associar o vermelho à vida, afinal era a vida que pouco a pouco a morte engolia, sem pedir permissão, nem licença. Conforme ela crescia, parecia fazer mais e mais sentido pensar a vida como o vermelho. Pensava no sangue, sempre em movimento em nossas veias e artérias, no fogo, no sol. Sim, a vida é vermelha. Já a Morte é azul. “Por que azul?”, encucava a menina. Só pensava no azul como inalcançável. Tal como o céu era também a Morte que não se podia tocar, nem estapear, ou mesmo controlar, só observar.
Mas antes que aprendesse ou aceitasse essa possibilidade, sua ira contra a intocável lhe gerou alguns problemas: se fosse rica, seus pais lhe mandariam para um terapeuta infantil, como não o era, sua mãe lhe levou para diferentes centros espirituais e igrejas para tentar lhe tirar os maus espíritos. Nada funcionou, mas com o tempo ela aprendeu que era melhor disfarçar para ser considerada uma pessoa normal. Tampouco tentar agarrar a Morte pela gola e dar-lhe algumas boas porradas se mostrava eficiente. Gritar e desesperar, tentar fugir, em nada dissuadiriam a Morte em sua constante e tediosa missão.
A menina já era uma adolescente e nessa nova fase da vida buscou também atualizar sua relação com a Morte. Se fugir ou enfrentar não eram mais opções, como poderia ela driblar o monstro? Era preciso entendê-la, mas que sentido havia na existência de algo que só faz sugar o vermelho da vida? Às vezes numa pequena proporção, como uma brisa, às vezes de uma forma tão violenta que parecia engolir um ciclone rubro, como era o caso das mortes repentinas.
Queria saber o que mais a Morte fazia além disso. Por isso, se ninguém estava olhando, começava a seguir a Morte. Porém, observou que, depois de cumprir sua missão, a monstrenga rapidamente se deslocava para outro lugar que não podia acompanhar, até aparecer novamente.
Desistiu de seguir a Morte, mas não de tentar entender um pouco aquela criatura que tanta dor deixava em seu caminho sem nunca expressar qualquer sentimento, qualquer empatia por aqueles que lesionava. A Morte era fria (talvez por isso azul), insensível. Fria como o homem que faz a guerra e mata outros homens desconhecidos por motivos grande parte das vezes também desconhecidos ou tão pouco refletidos que só com base em muita frieza podem ser considerados motivos.
E o frio é azul, pensava ela. Nos desenhos, nos filmes, o inverno é quase sempre caracterizado em azul. Vai ver por isso que os meninos são acostumados a gostar de azul: para serem aqueles homens frios que fazem as guerras, que amordaçam sentimentos, e não choram. Frios como a Morte que gera dor sem esboçar qualquer sentimento. Vai ver por isso que os meninos desde cedo ganham de brinquedos armas, carros de polícia, bonecos de soldados. Adestrados como soldados da Morte lhes são estimuladas brincadeiras violentas e a brutalidade forçada como pré-requisito para serem reconhecidos como seres dignos de vestir azul. Como se a Morte precisasse recrutar guerreiros, seu trabalho “natural” já é bastante eficiente.
Se é para lutar, pensava a menina, melhor lutar pela vida. Nesse sentido a educação das meninas parece melhor: brincar de gerar vida e cuidar das pessoas, limpar, cozinhar, arrumar e todas essas coisas dignas e lindas que deveriam ser atribuições de todos os seres humanos, mas que são vistas como vergonhosas para os meninos. Deve ser por isso que às meninas estimulassem usar o rosa. Rosa é vermelho, vermelho e branco.
Mas nem sempre a menina gostou de ser menina, lembrava-se. Essas atividades dignas e lindas, fundamentais à vida são também trabalhosas, e tantas vezes sua mãe lhe exigia que a ajudasse a cozinhar, lavar e passar enquanto seus irmãos homens jogavam e se divertiam livremente. É, ser um soldado da Morte pode trazer alguns benefícios.
Mas pensar em unir forças com a sua arqui-inimiga? Jamais! Lutaria sempre pela vida. Foi assim que meio por um acaso ouviu falar sobre e passou a ficar obcecada pela Cruz Vermelha. Pesquisou na internet e apaixonou-se pela instituição internacional cuja missão central é a de proteger vidas humanas da Morte. Aos 18 anos iniciou um curso de enfermagem, visando um dia ingressar na tão amada organização. Seria assim que confrontaria aquela que lhe rendeu tantos traumas. Aos 21 se questionava se conseguiria alcançar seu grande sonho. Tímida, de família pobre e sem contatos, era difícil acessar aquele universo. Mas ainda que mantivesse o sonho no horizonte, a paixão havia abrandado. A Enfermagem lhe rendeu muitas satisfações como compensação. Lado a lado de colegas aguerridos na luta pela vida, viu que nem todos os homens eram azuis, havia homens vermelhos. Pesquisando fascinada pela Cruz Vermelha descobriu também que seu fundador foi um homem, mais exatamente o suíço Jean Henri Dunant. Que bom seria se todos fossem assim, pensava ela enquanto voltava exausta do estágio. Mas em sua casa, só tinha por exemplo mulheres. Eram elas que estavam constantemente preocupadas com os outros, especialmente sua mãe e sua avó. Antes de pensarem em si próprias, cuidavam da família, vizinhos e ocasionalmente até de desconhecidos em necessidade. Coisa que nunca viu nos homens de seu parentesco, visivelmente preocupados consigo mesmos: seus trabalhos, seus lazeres, suas propriedades. Na escola, as professoras tinham calma e davam carinho, o inspetor era ríspido e agressivo. Em certo momento passou a achar que era da natureza dos homens todos serem azuis. A faculdade lhe fez ver que rupturas são possíveis.
Pensando nessas coisas, chegou em casa. Era noite, mas não havia ninguém. Era hora de culto. Foi esquentar a comida que sua mãe lhe havia deixado preparada. De repente, assustou-se, a Morte vinha fazer visita. Já deveria ter se acostumado, mas o cansaço baixou-lhe a guarda. Ela veio em sua direção de uma maneira inusitada. Posicionou-se bem a sua frente, como se a mirasse diretamente, mesmo sem olhos possuir. E disse: “A Morte está em todos vocês. Não há como me escapar, pois sou irmã do Tempo e da Tragédia, mas nunca pedimos que ninguém trabalhe para nós”. Assustada, tremeu todo o corpo, mas ficou estática, catatônica. O espectro pegou sua mão e furou-lhe o dedo indicador. Com sua mão etérea, mas que agora, pela primeira vez a menina podia sentir, a morte tocou o sangue que se tornou roxo. E desapareceu em seguida.
Como foi difícil dormir aquela noite. Praticamente impossível. O pior era não poder dividir a angústia com ninguém. Estava sozinha. De manhã cedo levantou-se exausta, mas precisava ir para a faculdade. Sua mãe deixava a televisão ligada e o telejornal da manhã noticiava uma grande manifestação. Várias mulheres e alguns homens protestavam contra um candidato violento e militarista. A menina não entendia muito de política, mas lhe chamou a atenção especialmente a cor das camisas e bandeiras que carregavam.

Mariana Penna, 2014/2016/2019.


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