terça-feira, 12 de agosto de 2014

Corpo e Cérebro




Desde criança Janaína decidiu que não queria ser só mais uma menininha. Queria ser a melhor aluna em matemática e jogar bola melhor que qualquer um dos moleques. No Ensino Médio percebeu que sua paixão pela química e física tinha superado em muito sua vontade de participar das peladas com os garotos.
Era loura, e seu grande pesadelo era ser considerada burra. Passou no vestibular dentre os primeiros lugares para o curso de biomedicina na UFRJ. Antes estava na dúvida entre biomedicina e farmácia. Queria estudar doenças e suas curas. Fez estágio do Ciências Sem Fronteiras nos Estados Unidos e tão logo terminou a graduação passou num concurso para a Fiocruz. Lá desenvolvia pesquisas sobre doenças tropicais, com foco na dengue.
Um dia, porém, chegou um famoso cientista da República Tcheca em visita à Fiocruz. Borya Stansel ficou admirado com o nível de sofisticação da pesquisa desenvolvida por Janaína e sua equipe. Marcaram um café para continuar a conversa. Duas horas rapidamente se passaram naquele intercâmbio científico. Janaína mencionou que quisera ela ter duas vidas para poder avançar o suficiente na pesquisa. Foi então que o tcheco lhe confidenciou que havia um modo de ampliar em até quatro vezes sua velocidade cerebral, mas que para obter tal façanha o custo seria elevado.
Os olhos de Janaína brilharam de emoção: - Que custo?
- Seu corpo.
Mas antes que a jovem genial se ofendesse com tal proposta indecente, Borya explicou que se tratava de um custo mais literal: para ampliar o funcionamento cerebral ela precisaria se submeter a um procedimento cirúrgico que separaria sua cabeça do restante do corpo.
Apesar do arrepio que lhe percorreu a espinha, apesar da visão apavorante que transpunha sua imaginação para um cenário de filme de terror, apesar de tudo, a ideia ainda lhe parecia atraente. Não pestaneou e aceitou a proposta. Naquela noite, Janaína abriria mão de seu corpo para tornar-se a mulher mais inteligente do mundo, o ser humano mais inteligente do mundo.
O medo foi suplantado pela ansiedade e passado o efeito da anestesia, um mundo de possibilidades mentais se apresentava à jovem. Seus sentidos ampliados, as contas mais complexas resolvidas num piscar. Não precisava se alimentar, nem ir ao banheiro, nem mesmo respirar, tudo lhe é era fornecido diretamente pela máquina que lhe mantinha viva e acelerava seu cérebro. A mesma máquina transcrevia as ideias que Janaína expunha oralmente. Borya estava orgulhoso de ter criado uma verdadeira máquina de pensar!
Porém, uma coisa deu errado. Janaína subitamente se sentiu enjaulada, percebeu que estava fisicamente presa à sua mente. Como se não bastasse não poder mais correr, nem andar, nem tocar em nada, sabia que estava só. Já não era um ser humano como os demais, seu cérebro era tão mais rápido que não se entenderia com mais ninguém. Olhou para seu corpo, estendido, inerte, sua vontade era de gritar e gritar muito. E foi isso que ela fez: começou a gritar histericamente.
Borya apavorado tentou acalma-la, ao que ela respondeu:
- Não, não, não, não, não, não!
E o arrependimento se vocalizava repetidas vezes:
- Devolva meu corpo, eu quero meu corpo!
...
Janaína acordou apavorada, suando. Ainda estava noite. Acalmou a respiração e ainda nervosa olhou para baixo. Com alívio, constatou: seu corpo estava lá...
Naquele mesmo dia, ela resolveu se matricular num curso de dança.
 
Mariana Penna, 2014

2 comentários:

  1. Apesar do clichê no final, de tudo ter sido apenas um sonho, essa é uma ideia muito interessante, que poderia ser mais desenvolvida. Da minha parte eu jamais sacrificaria o meu corpo para ter mais inteligência. Aliás, se formos pensar bem, a Janaína tinha uma perspectiva bem individualista do que seria um trabalho científico, por acreditar que ela sozinha poderia encontrar todas as respostas. Eu creio que a ciência é uma construção constante, que nunca poderá depender do trabalho de uma só pessoa para chegar às grandes conquistas. De qualquer forma foi um texto bem interessante.

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    1. Oi Marcos! Relendo o texto, acho que ele realmente poderia ter sido melhor elaborado, acho que poderia ampliar a trama. O sonho, mesmo clichê, era inevitável, porque esse conto surgiu de um sonho que também me motivou a fazer dança. Lógico que foi adaptado, mas a ideia básica era essa de separar o cérebro do corpo. E legal que você curtiu, é interessante essa ideia que vc colocou sobre o individualismo, acho que mais até que individualismo, o sonho da inteligência absoluta é extremamente egocêntrico, e por isso mesmo a consequência a solidão total. Por sinal, estou baixando um filme que acho que trata sobre esse tema: Lucy. Se for bom te falo. Beijos!

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