quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Afagos Clandestinos




Se perguntava sobre como tudo teria sido se Elisângela não tivesse morrido. Estaria ela ali, sentada naquele sofá velho, à meia luz, tirando e colocando as balas no 38, enquanto pensamentos contraditórios assombravam seu espírito?
Com o olhar perdido, lançado sobre algum ponto sem significado da parede a sua frente, pensava em sua família e no quanto deviam sentir sua falta. Lacrimejava ao pensar nas dores de sua mãe... Doía demais a culpa por fazê-la sofrer, mas Liz não podia se acovardar. Quantas mães não sofreram dores maiores que aquela, fruto da ação de seus inimigos? Da sua ação dependia a mudança da sociedade, era necessário entregar-se em sacrifício por um bem maior.  

Mas será? Será que conseguiriam acordar as massas? Fazê-las despertar para a Revolução Social? Destronariam enfim seus opressores que lhes tomaram tudo e impuseram ao povo a miséria? Eram tantas dúvidas, mas tentava se convencer da certeza de seu destino, da necessidade de não voltar atrás, certa ou errada – justificava a si mesma – a escolha havia sido feita e não podia arredar pé. Elisângela morreu, acreditam que seguiu até o final sem delatar nenhum companheiro. Era duro demais imaginar as dores pelas quais ela devia ter passado. Era preciso também ser forte, era preciso honrar a memória da companheira.
Mas ao mesmo tempo, confrontada com as incertezas, a inevitabilidade do destino lhe era atemorizadora. Tentava acalmar seu espírito. Sua barriga gelava enquanto manipulava o chumbo. Foi quando da escuridão veio André, em aparência transtornado. Havia uns três meses que Liz e André transaram. Num momento de solidão, enquanto outros companheiros estavam fora: troca de olhares, poucas palavras, gemidos de sexo em tom de desespero...
André nunca mais falou sobre isso. Liz percebeu que o rapaz a evitava, também se afastou. Doeu, ficou ressentida. Mas há que endurecer em dobro quando se é uma mulher e guerrilheira urbana. Tentou esquecer, ignorar que a troca de afetos lhe fazia falta.
Mas foi então que André lentamente se aproximou, agachou em frente à jovem, tirou de lado a arma e segurou-lhe as mãos. Seus olhos haviam chorado ou estavam prestes a fazê-lo:
- Desculpa Liz! Eu fui egoísta, não pensei em você, quis afastar de mim tudo o que pudesse me fazer menos forte. Mas este fardo está pesado demais para carregar. E a verdade é que amanhã faremos a mais arriscada ação até o momento e ... não dá, preciso assumir, preciso confessar... o meu medo. Eu queria que tudo fosse diferente, queria poder saber o seu nome e você o meu. Queria conhecer seu passado e poder contar-lhe o meu. Mas esse mundo não nos deixou escolhas, não é companheira?
 Ela chorou... e retribuiu um beijo terno. Com as mãos que antes tocavam a arma, agora afagava os cabelos de seu companheiro. Sentia deslizar pelos dedos aqueles fios lisos. A sensação a acalmava... não era mais o contato frio do metal. E doaram-se os mais delicados carinhos, se permitiram sentir, tocar... parecia que podiam fundir os corpos num abraço... E assim permaneceram, completamente grudadinhos, como duas crianças assustadas.
No dia seguinte, os dados seriam lançados: vida, morte, ou o pior... tortura. Um destes lhes esperava. Mas naquela noite, tudo o que desejavam era que nada daquilo parecesse importar, só queriam esquecer, por alguns momentos, que tiveram o mau destino de nascerem em tempos sombrios.

Mariana Penna, 2014.

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