Dona Conceição estava em casa
cozinhando seu feijãozinho com paio, no barraco em São João de Meriti. Acostumada
que ficou com o barulho das crianças correndo pela casa, não aguentava o
silêncio de quando estes cresceram e pouco barulhavam ali, por isso o rádio
ligado era uma necessidade básica. Normalmente nem se atentava muito ao que era
dito, apenas gostava de ouvir o som. Era uma tarde de verão, um verão
insuportavelmente quente no Rio de Janeiro. Há muitos dias não sabia o que era
chuva. Desejava um alívio praquele suplício, mas o ar-condicionado estava
quebrado e ao mesmo tempo que desejava a chuva, temia os estragos que ela
andava fazendo ali pela Baixada. Com aquele calor, era um desânimo só, mas
tinha que esquentar a barriga no fogão, senão o marido e a filharada iam ficar
putos na hora do jantar. Riscou o fósforo pra preparar o refogado quando ouviu
uns treco estranho no rádio: falava-se de um tal de rolézinho. “Rolézinho? Mas
que merda é essa?”, pensou ela fazendo uma cara de interrogação. Ouviu alguma
coisa de jovens nos shoppings e então apagou o fogo. Resolveu puxar a cadeira e
descansar do calor em frente ao ventilador enquanto ouvia o que diziam. Rapidinho
sacou e não pôde guardar silêncio, tendo que pronunciar em voz alta, ainda que
para si mesma: “Aff, lá vêm de novo os ricos com raiva dos pobres!”. Lembrou-se
de uma das maiores loucuras que fez na sua vida: o tal passeio no shopping Rio
Sul há mais de 10 anos atrás. Virou até documentário! É, aquela tinha sido uma
loucura das boas! Se lembrava vividamente do ocorrido, liberando um sorriso
inconsciente. Lembrava que foi sua amiga chapa quente que se meteu com o movimento sem-teto quem lhe chamou para participar de um passeio dos pobres no shopping
dos ricos. O marido chiou, mas ela encrespou e foi. Valeu a pena! Foi bom,
aprendeu muito com aquele passeio no shopping. Sentiu raiva, desprezo,
solidariedade, orgulho, vergonha, tristeza, compaixão... em resumo: uma
avalanche de sensações contraditórias que só alguém que vivencia, que sofre um
ataque numa situação de extrema injustiça e violência simbólica como aquela,
pode saber o que significa. Aconteceu lá pelo inicinho dos anos 2000, quando um
grupo de sem-teto e militantes foram passear no shopping Rio Sul, olhar as
modas, comer pão com mortadela e foram recebidos como criminosos, com lojas se
fechando ao notar a aproximação daquela “gente diferenciada”, com desprezo dos
vendedores, piadinhas preconceituosas, dentre outros. É, Dona Conceição se
orgulhava de ter participado daquela história que virou até filme! No fundo,
ela gostava de contar vantagem lá no morro: nasceu assim rebelde e assim ia
continuar a ser! Se ao menos ela tivesse algum estudo, pensava, talvez pudesse
fazer alguma coisa, mas algo era certo, passava o tempo, mas aquela revolta não
saía de dentro dela. Seu marido não gostava e ela não queria desagradá-lo
porque sabia que era um homem bom, mas uma coisa Dona Conceição queria muito ter
feito e ficou frustrada por não fazer: ir na manifestação que
rolou no centro do Rio em junho do ano passado, em 2013. Ah, disso ela não
perdoava ele! E o homem falava: “tu é louca, mulher? Não viu o que a polícia
fez com as pessoas não? Você quer morrer?” E ela, que posava de valentona não
resistiu: “melhor que ficar que nem muita gente aí que só sabe reclamar da vida,
ou pior: fica cuidando da vida dos outros!”. É, o maridão não ficou muito
contente com a resposta, mas ela não resistiu.
Conceição não queria ter
deixado de participar das bagunças políticas, como eles falavam, mas além da
oposição do marido, tinha tanta gente de estudo no meio que ela se sentia um
pouco desconfortável. Eram gente boa, ela gostava de alguns que conheceu lá na
época do movimento sem teto, mas tinha algo lá no fundinho do peito que a deixava incomodada. Não sabia se sentia um pouquinho de raiva, ou inveja, ou se
simplesmente achava que eles falavam um pouco demais dos problemas que eles
próprios não viviam. Vixe, mas toda vez que passavam por sua cabeça esses
pensamentos, rapidamente ela queria apagar aquilo da mente, se censurar. Vinha
logo a razão e dizia: eles são gente boa, gente que nasceu bem de grana e não
precisa estar se preocupando com nada disso aqui, mas ainda assim estão
tentando fazer alguma coisa. De qualquer forma, ela sabia que por mais legal
que fosse aquela galera que falava bonito, uma coisa era certa: eles não eram
gente como a gente, pensava.
Mas voltemos ao rádio...
Aquela história de rolézinho
atiçou ainda mais seu espírito agitado. Já estava chateada de não ter ido às
ruas em 2013, quando o povo saiu em multidão que parecia carnaval. Aquele mundo
de gente na rua pra protestar! Agora vinham os jovens sendo destratados e
chamados de bandidos por se reunirem pruma baguncinha no shopping. Ah, pensava
ela como num relance: “acho que Deus está me chamando de novo pra fazer alguma
coisa pro meu povo”.
Chegando a noite, a casa estava
cheia, o barulho que ela tanto gostava dominava o espaço. O marido e os filhos
elogiavam a comida, depois de um longo e fatigante dia de trabalho! Ela,
irrequieta, e sentindo aquelas borbolhetinhas no estômago de ansiedade, pensava
consigo mesma: “falo ou não falo, falo ou não falo?”. Falou! Jogou no ar a
pergunta: “O que vocês estão achando desse negócio de rolézinho?”. O marido
olhou de rabo de olho, desconfiado. E logo veio uma enxurrada de opiniões que
ela no fundo avaliou estranhas e contraditórias. Pensou até, como o fazem todas
as mães, se teria educado corretamente seus filhos. Mas deixa quieto, melhor
não polemizar e ir dormir.
Passaram-se algumas semanas, no
mesmo calor que lhe tirava o ânimo, mas tinha uma coisa que Dona Conceição não
tirava da cabeça: os tais dos “rolézinhos” que a juventude tinha feito e que
lembravam tão fortemente sua experiência pessoal! Porém, o negócio foi
acalmando, diminuindo e parecia que iria acabar.
Veio então o carnaval e com ele
uma grande surpresa: a Greve dos Garis no Rio de Janeiro! Soube da notícia dessa
vez pela televisão. De queixo caído, inconscientemente cerrava os punhos
enquanto assistia a notícia, apertando as unhas contra a palma da mão, num
misto de ansiedade e empolgação:
- Mas Tadeu, agora você não me
impede, eu vou pra rua apoiar esse povo! Primeira vez que tem gente como a gente
fazendo protesto! Pobre que nem nós, preto que nem nós! Mas agora eu vou, e vou
sim, você não vai me impedir!
Seu marido não queria deixar, nem
gari eles eram, que ideia desmiolada era aquela de fazer protesto e ainda no
carnaval? Ele sabia que não ia dar em nada e tentou convencer a esposa de tirar
aquelas ideias malucas da cabeça. Mas Dona Conceição não quis nem saber, ligou
para sua amiga chapa quente e perguntou como elas podiam apoiar. Descobriu a
data da manifestação, comprou uma blusa laranja na Citycol do centro da cidade, um
papel pardo e uma caneta pilot preta na papelaria perto de casa e tomou seu rumo quando
chegou o dia. Pegou o metrô na Pavuna rumo à Cinelândia. No caminho ouviu duas
dondocas conversando:
- Onde já se viu, lixeiro querer
salário de R$1500,00? Está tudo errado nesse país, do jeito que a coisa está nem vale mais a pena estudar, melhor fazer baderna!
Aff, mas o sangue da favelada
ferveu, a vontade era de esculachar aquelas patricinhas bem nascidas. Mas não
teve coragem, se intimidou, porém se arrependeu depois. Em compensação, chegado
ao destino, o ânimo dos companheiros na passeata apaziguou seu espírito. Vários
garis agradeceram por seu apoio. Caminhava orgulhosa com seu cartaz e tudo
corria bem, quando, do nada, o povo começou a correr e a bomba da polícia lhe
ardeu os olhos como nunca antes nenhuma cebola ardida foi capaz de fazer. E o
pior, esse gás venenoso lhe sufocava de tal forma que pensou que havia chegado
sua hora. Mas não, ainda não... correu como todos, ajudada por alguns,
conseguiu escapar e voltar para sua casa. Não contou nada para o marido, mas
ele sabia que tinha se passado alguma coisa desagradável.
Não se intimidou, continuou a
participar, foi em reuniões. Pouco entendia das brigas entre os garis e seu
sindicato, mas sentia que estava do lado certo em apoiar a greve. Passou a ir
em todas as atividades, em todas as lutas. Estava cada vez mais empolgada e não
havia dificuldade que a fizesse desanimar. Ao final, a prefeitura teve que
negociar diretamente com os trabalhadores. Ansiosa, Dona Conceição aguardava
nos arredores pelo resultado das discussões: uma vitória histórica! Os
trabalhadores conseguiram várias de suas exigências! A senhora rebelde da
Baixada saltitava de emoção, abraçava os companheiros e chorava de alegria!
Voltou com sua amiga para São João. No caminho, entre risos e lágrimas
emocionadas, relembravam sem censura os momentos auge daquela luta tão
aguerrida.
Chegando em casa, o marido Tadeu
a esperava na porta:
-Parabéns! - e beijou-lhe carinhosamente a testa.
Mariana Penna,
2014/2015
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