terça-feira, 13 de janeiro de 2015

No rolézinho de Dona Conceição



Dona Conceição estava em casa cozinhando seu feijãozinho com paio, no barraco em São João de Meriti. Acostumada que ficou com o barulho das crianças correndo pela casa, não aguentava o silêncio de quando estes cresceram e pouco barulhavam ali, por isso o rádio ligado era uma necessidade básica. Normalmente nem se atentava muito ao que era dito, apenas gostava de ouvir o som. Era uma tarde de verão, um verão insuportavelmente quente no Rio de Janeiro. Há muitos dias não sabia o que era chuva. Desejava um alívio praquele suplício, mas o ar-condicionado estava quebrado e ao mesmo tempo que desejava a chuva, temia os estragos que ela andava fazendo ali pela Baixada. Com aquele calor, era um desânimo só, mas tinha que esquentar a barriga no fogão, senão o marido e a filharada iam ficar putos na hora do jantar. Riscou o fósforo pra preparar o refogado quando ouviu uns treco estranho no rádio: falava-se de um tal de rolézinho. “Rolézinho? Mas que merda é essa?”, pensou ela fazendo uma cara de interrogação. Ouviu alguma coisa de jovens nos shoppings e então apagou o fogo. Resolveu puxar a cadeira e descansar do calor em frente ao ventilador enquanto ouvia o que diziam. Rapidinho sacou e não pôde guardar silêncio, tendo que pronunciar em voz alta, ainda que para si mesma: “Aff, lá vêm de novo os ricos com raiva dos pobres!”. Lembrou-se de uma das maiores loucuras que fez na sua vida: o tal passeio no shopping Rio Sul há mais de 10 anos atrás. Virou até documentário! É, aquela tinha sido uma loucura das boas! Se lembrava vividamente do ocorrido, liberando um sorriso inconsciente. Lembrava que foi sua amiga chapa quente que se meteu com o movimento sem-teto quem lhe chamou para participar de um passeio dos pobres no shopping dos ricos. O marido chiou, mas ela encrespou e foi. Valeu a pena! Foi bom, aprendeu muito com aquele passeio no shopping. Sentiu raiva, desprezo, solidariedade, orgulho, vergonha, tristeza, compaixão... em resumo: uma avalanche de sensações contraditórias que só alguém que vivencia, que sofre um ataque numa situação de extrema injustiça e violência simbólica como aquela, pode saber o que significa. Aconteceu lá pelo inicinho dos anos 2000, quando um grupo de sem-teto e militantes foram passear no shopping Rio Sul, olhar as modas, comer pão com mortadela e foram recebidos como criminosos, com lojas se fechando ao notar a aproximação daquela “gente diferenciada”, com desprezo dos vendedores, piadinhas preconceituosas, dentre outros. É, Dona Conceição se orgulhava de ter participado daquela história que virou até filme! No fundo, ela gostava de contar vantagem lá no morro: nasceu assim rebelde e assim ia continuar a ser! Se ao menos ela tivesse algum estudo, pensava, talvez pudesse fazer alguma coisa, mas algo era certo, passava o tempo, mas aquela revolta não saía de dentro dela. Seu marido não gostava e ela não queria desagradá-lo porque sabia que era um homem bom, mas uma coisa Dona Conceição queria muito ter feito e ficou frustrada por não fazer: ir na manifestação que rolou no centro do Rio em junho do ano passado, em 2013. Ah, disso ela não perdoava ele! E o homem falava: “tu é louca, mulher? Não viu o que a polícia fez com as pessoas não? Você quer morrer?” E ela, que posava de valentona não resistiu: “melhor que ficar que nem muita gente aí que só sabe reclamar da vida, ou pior: fica cuidando da vida dos outros!”. É, o maridão não ficou muito contente com a resposta, mas ela não resistiu. 
Conceição não queria ter deixado de participar das bagunças políticas, como eles falavam, mas além da oposição do marido, tinha tanta gente de estudo no meio que ela se sentia um pouco desconfortável. Eram gente boa, ela gostava de alguns que conheceu lá na época do movimento sem teto, mas tinha algo lá no fundinho do peito que a deixava incomodada. Não sabia se sentia um pouquinho de raiva, ou inveja, ou se simplesmente achava que eles falavam um pouco demais dos problemas que eles próprios não viviam. Vixe, mas toda vez que passavam por sua cabeça esses pensamentos, rapidamente ela queria apagar aquilo da mente, se censurar. Vinha logo a razão e dizia: eles são gente boa, gente que nasceu bem de grana e não precisa estar se preocupando com nada disso aqui, mas ainda assim estão tentando fazer alguma coisa. De qualquer forma, ela sabia que por mais legal que fosse aquela galera que falava bonito, uma coisa era certa: eles não eram gente como a gente, pensava.
Mas voltemos ao rádio...
Aquela história de rolézinho atiçou ainda mais seu espírito agitado. Já estava chateada de não ter ido às ruas em 2013, quando o povo saiu em multidão que parecia carnaval. Aquele mundo de gente na rua pra protestar! Agora vinham os jovens sendo destratados e chamados de bandidos por se reunirem pruma baguncinha no shopping. Ah, pensava ela como num relance: “acho que Deus está me chamando de novo pra fazer alguma coisa pro meu povo”.
Chegando a noite, a casa estava cheia, o barulho que ela tanto gostava dominava o espaço. O marido e os filhos elogiavam a comida, depois de um longo e fatigante dia de trabalho! Ela, irrequieta, e sentindo aquelas borbolhetinhas no estômago de ansiedade, pensava consigo mesma: “falo ou não falo, falo ou não falo?”. Falou! Jogou no ar a pergunta: “O que vocês estão achando desse negócio de rolézinho?”. O marido olhou de rabo de olho, desconfiado. E logo veio uma enxurrada de opiniões que ela no fundo avaliou estranhas e contraditórias. Pensou até, como o fazem todas as mães, se teria educado corretamente seus filhos. Mas deixa quieto, melhor não polemizar e ir dormir.
Passaram-se algumas semanas, no mesmo calor que lhe tirava o ânimo, mas tinha uma coisa que Dona Conceição não tirava da cabeça: os tais dos “rolézinhos” que a juventude tinha feito e que lembravam tão fortemente sua experiência pessoal! Porém, o negócio foi acalmando, diminuindo e parecia que iria acabar.
Veio então o carnaval e com ele uma grande surpresa: a Greve dos Garis no Rio de Janeiro! Soube da notícia dessa vez pela televisão. De queixo caído, inconscientemente cerrava os punhos enquanto assistia a notícia, apertando as unhas contra a palma da mão, num misto de ansiedade e empolgação:
- Mas Tadeu, agora você não me impede, eu vou pra rua apoiar esse povo! Primeira vez que tem gente como a gente fazendo protesto! Pobre que nem nós, preto que nem nós! Mas agora eu vou, e vou sim, você não vai me impedir!
Seu marido não queria deixar, nem gari eles eram, que ideia desmiolada era aquela de fazer protesto e ainda no carnaval? Ele sabia que não ia dar em nada e tentou convencer a esposa de tirar aquelas ideias malucas da cabeça. Mas Dona Conceição não quis nem saber, ligou para sua amiga chapa quente e perguntou como elas podiam apoiar. Descobriu a data da manifestação, comprou uma blusa laranja na Citycol do centro da cidade, um papel pardo e uma caneta pilot preta na papelaria perto de casa e tomou seu rumo quando chegou o dia. Pegou o metrô na Pavuna rumo à Cinelândia. No caminho ouviu duas dondocas conversando:
- Onde já se viu, lixeiro querer salário de R$1500,00? Está tudo errado nesse país, do jeito que a coisa está nem vale mais a pena estudar, melhor fazer baderna!
Aff, mas o sangue da favelada ferveu, a vontade era de esculachar aquelas patricinhas bem nascidas. Mas não teve coragem, se intimidou, porém se arrependeu depois. Em compensação, chegado ao destino, o ânimo dos companheiros na passeata apaziguou seu espírito. Vários garis agradeceram por seu apoio. Caminhava orgulhosa com seu cartaz e tudo corria bem, quando, do nada, o povo começou a correr e a bomba da polícia lhe ardeu os olhos como nunca antes nenhuma cebola ardida foi capaz de fazer. E o pior, esse gás venenoso lhe sufocava de tal forma que pensou que havia chegado sua hora. Mas não, ainda não... correu como todos, ajudada por alguns, conseguiu escapar e voltar para sua casa. Não contou nada para o marido, mas ele sabia que tinha se passado alguma coisa desagradável.
Não se intimidou, continuou a participar, foi em reuniões. Pouco entendia das brigas entre os garis e seu sindicato, mas sentia que estava do lado certo em apoiar a greve. Passou a ir em todas as atividades, em todas as lutas. Estava cada vez mais empolgada e não havia dificuldade que a fizesse desanimar. Ao final, a prefeitura teve que negociar diretamente com os trabalhadores. Ansiosa, Dona Conceição aguardava nos arredores pelo resultado das discussões: uma vitória histórica! Os trabalhadores conseguiram várias de suas exigências! A senhora rebelde da Baixada saltitava de emoção, abraçava os companheiros e chorava de alegria! Voltou com sua amiga para São João. No caminho, entre risos e lágrimas emocionadas, relembravam sem censura os momentos auge daquela luta tão aguerrida.
Chegando em casa, o marido Tadeu a esperava na porta:
-Parabéns! - e beijou-lhe carinhosamente a testa.



Mariana Penna, 2014/2015

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