quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Paul, o escritor




Paul Mathews, 26 anos, solteiro, branco, vendedor de calçados em uma loja na Broadway, cursa Computação à distância.
Seu sonho secreto: ser um dia um escritor famoso.
Sua maior vergonha: morar ainda com a mãe.
Lazer: jogar World of Warcraft de madrugada. As vezes joga também The Sims 3 para tentar se imaginar numa vida completamente diferente, mas esse é outro segredo, já que não é bem visto um homem jogar esse tipo de jogo.
Heterossexual, teve alguns breves namoros, nada de muito memorável. Gosta de mulheres asiáticas, negras, brancas, latinas, todo tipo, sem preconceitos, sendo inclusive bastante eclético no que diz respeito às suas distrações no Xvideos.
Magro, apesar da péssima alimentação, repleta de gorduras e carboidratos. Sua “sorte” era comer pouco mesmo, principalmente quando estava chateado ou deprimido.
Posição Política: sem grande empolgação, acabava votando nos que achava menos ruins, em geral os Democratas. Simpatizava com os filmes de Michael Moore.
Seu cotidiano: preparar um café da manhã gorduroso, ir pro trabalho, voltar do trabalho, ajudar sua mãe com os afazeres domésticos e, em média uma a duas vezes por semana, sair com seus amigos para relaxar.
Porém, uma vez a cada duas semanas, Paul se permitia um lazer diferente e mais íntimo. Tomava o metrô para Manhatan, saltava para fazer uma conexão, e, sem pressa, observava seu entorno no interior da estação. Se houvesse alguma apresentação de um artista de rua no caminho, o que era bastante comum, parava como um turista para assistir, e deixava um ou dois dólares de gorjeta. Trocava de linha e, enfim, descia na estação em frente ao Museu de História Natural, dali seguia caminhando para o Central Park. Procurava um lugar para sentar e, uma vez bem posicionado, ao abrigo do sol e com uma visão aprazível, abria sua mochila, pegava a caneta e um de seus dois caderninhos: o verde ou o preto. O verde era o principal: usava para escrever suas histórias. O preto era um diário no qual relatava não apenas os acontecimentos, mas principalmente suas reflexões. Tinha dias em que ele já começava sacando direto o caderninho verde, porém na maioria das vezes era o preto que introduzia os trabalhos. Hoje era um desses dias regulares. Mas antes que começasse a escrever, Paul observava e pensava. Respirava calma e profundamente enquanto olhava ao seu redor. Admirava a folhagem das árvores: verdes no verão e primavera, multicoloridas no outono, marrons ou mesmo ausentes no inverno. Paul admirava a variação das estações, não invejava a galera da Flórida, nem mesmo do Havaí. A mudança lhe trazia boas sensações. Esse gosto pela mudança parecia contradizer sua rotina, significativamente tão estável, mas não contradizem o clima das suas histórias. Naquelas vidas paralelas, a quebra da ordem era um imperativo constante e a mudança das estações lhe ajudava a ambientar os diferentes cenários imaginados. E ele estava no parque para transformar em registro escrito aquelas obras da fantasia.

Mas antes, havia ainda umas reflexões na ordem do dia. Tomou a caneta e começou a registrar no caderno preto os pensamentos que conseguia organizar em texto.
Paul gostava do seu trabalho, ainda que muitos o vejam como algo medíocre, ou até subalterno. Ficaria satisfeito em receber mais e não ter de acatar ordens, porém, a função em si lhe era atraente. Gostava de lidar com o público. Diferente da maioria dos colegas, fazia questão de ser simpático e desfrutava de um prazer extra ao perceber que os clientes saíam satisfeitos com o seu atendimento. Em consequência, Paul se percebia útil, e isso era um conforto. Ainda assim, seu segredo o perturbava de tempos em tempos.
Segredos encobrem normalmente ações deploráveis, moralmente condenáveis. Mas o segredo de Paul não se tratava exatamente de algo assim, seu segredo era seu sonho, talvez o mais forte deles.
Paul criava histórias em sua cabeça, era assim desde criança. É, talvez isso seja normal para as crianças, mas ele manteve essa característica ainda adulto, o que faz disso algo possivelmente não tão normal assim. Imaginar criaturas fantásticas em mundos de possibilidades infinitas, aventuras as mais incríveis, viagens no passado ou simplesmente experimentar os modos de vida de épocas remotas, transportar-se para um futuro sombrio ou de possibilidades excitantes, encarnar os mais variados personagens, heróis com habilidades surpreendentes, deuses, seres imortais, vidas sem medos, nem limites. Eram histórias assim que ficavam empolgando sua cuca enquanto o leite fervia e derramava no fogão. Aventuras tão envolventes que preenchiam sem esforços o tempo gasto no metrô rumo ao trabalho.
Queria registrar tudo aquilo, e escrevia. Mas ele tinha vergonha e ao mesmo tempo tinha vergonha de ter vergonha, por isso seu sonho era um segredo. Não só por isso.
Para além do medo mais óbvio de não ser bom o suficiente no que fazia, havia ainda outros elementos que provocavam desconforto.
Escolheu o Central Park como “escritório”. Por quê? Era um lindo parque sem dúvida, mas era também um cartão postal mundialmente conhecido. Como tal, expressava em si uma ideia de grandiosidade. Certamente no entorno residiam muitas pessoas famosas, vez ou outra Paul esbarrava com alguma celebridade. Provavelmente vários escritores famosos habitavam próximo ao local em que ele se encontrava naquele momento. Não sabia de nenhum especificamente, pois apesar de gostar tanto de escrever, não era um leitor assíduo e, além do mais, não se ocupava em tietar famosos.
Porém, o fato dele estar ali, não demonstraria então seu desejo de ser grande? De ser “importante” como aquele lugar, como aquelas celebridades? Este pensamento o embaraçava, sentia-se infantil, seu sonho o infantilizava. Por que desejar ser conhecido? Por que precisaria ele estar acima dos outros, ser “mais” do que os outros para se sentir bem? Por que um escritor famoso deveria ser algo maior que um vendedor de calçados? Por que não se contentar com a simplicidade da vida? Sim, havia tantas belezas ao seu redor...
Interrompeu a escrita e consolou-se observando de perto uma flor vermelha que tocava o banco onde estava sentado. Uma formiga corria pelo caule, sem carregar nada, só se movimentava. Paul desconhecia o destino daquele inseto e desconhecia se a própria formiga tinha de fato pré-estabelecido um destino prévio.
Ok, seria então o momento de abrir o caderninho verde? Pegou e colocou no colo. Mas ainda não, não sabia que história escrever. Voltou a pensar em sua própria história, em seu próprio segredo, pois percebeu que aquilo o incomodava. Sentiu-se uma espécie de arrogante enrustido. Pensou nas vezes em que deixou seu pensamento fluir e quando percebeu: lá estava ele na figura de um Dan Brown ou uma Anne Rice da vida, sendo cultuado por uma multidão de fãs. Quando acontecia isso sentia-se bem, muito bem, por uns instantes, mas logo a seguir estava incomodado. Talvez fosse a angústia por saber que tal projeção era impossível de ser materializada. Talvez estivesse provocando mentalmente uma antecipação do fracasso como um mecanismo de defesa contra a frustração.
Nasceu na maior potência do mundo, cujos idioma e cultura são difundidos como modelo mundo afora, e ele tinha consciência disso. Nasceu na cidade mais famosa desse país. Talvez devesse ser grato ao destino por isso. Afinal, quantos não gostariam de estar em seu lugar? Quantos não nascem e morrem sob as circunstâncias mais adversas. Ser um vendedor de calçados na Broadway pode parecer um sonho inalcançável para muitas vidas circunscritas à vivência sangrenta de guerras civis sem fim e à miséria absoluta em países devastados. Devia assumir seu privilégio e se contentar. Mas talvez, se ele vivesse fora do centro do capitalismo mundial, em algum país da América Latina ou da Ásia, talvez lá, em alguma terra remota, seus modestos escritos tivessem alguma chance de ganharem reconhecimento. Envergonhou-se de súbito, pois se deu conta do pensamento vil que assaltou sua mente. Sentiu-se o canalha com ambições arrogantes do qual ele quer se desvencilhar.
“O mundo é simples, a vida é simples”, tentava se convencer! O desejo de grandeza é mero efeito de uma sociedade competitiva, da qual Paul é crítico. Ele gosta de se sentir bem com o mundo. Gosta que as pessoas o admirem e se esforça para isso. Tem consciência dessa necessidade de autossatisfação via valorização externa, mas ao mesmo tempo sabe que é justamente esse seu ímpeto de ser reconhecido que o precipita no desejo infantil e megalomaníaco de ser um escritor famoso, um “best seller”. Pronto, chegou-se a um dilema, Paul não quer mais pensar sobre isso, tornou-se enfadonho... Fecha o caderno preto. Abre o verde, após refletir um pouco, escolhe: a história de hoje é a de uma jovem indígena que organiza seu povo e combate os invasores brancos nas terras do atual Oeste dos Estados Unidos.
Passa-se um tempo e... pronto, foi até onde deu na redação por hoje. Paul pensa em algum dia mostrar suas histórias para alguém, quem sabe haverá outros que gostem dos frutos de sua imaginação. Algo simples, um blog discreto talvez. Sabe racionalmente que não será um Steve Berry. Ainda assim, quem sabe, poderá sentir-se útil e realizado, como quando sai um cliente satisfeito da loja onde trabalha. Mas não será agora que o ao mesmo tempo humilde e arrogante escritor vai socializar seus textos, falta-lhe a coragem de seus heróis. Não hoje... hoje Paul vai recolher seus caderninhos, coloca-los em sua mochila e retornar pensativo para casa, ansioso por um novo passeio no parque.
Mariana Penna, 2014/2015



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