Deslizei minha mão pelo seu rosto, contornando seu maxilar. Delicadamente
percorri sua espessa e longa barba grisalha com as pontas de meus dedos. Inclinando
levemente a cabeça em minha direção, ele acordou e devolveu meus carinhos com
um sorriso tão terno e um olhar tão doce que era capaz de embelezar aquele
cenário. Sorri-lhe de volta, mas meus olhos lacrimejaram. Tomei suas mãos nas
minhas e com meu polegar lhe massageava a superfície de sua pele... tão macia.
Se a rugosidade que o tempo provoca ofende a muitos o olhar, a delicadeza de
sua textura em nada deveria desagradar os caprichos estéticos do tato. Foquei na sensação do toque como um consolo. Mas
a visão não permitiu que seus efeitos fossem duradouros. Coletores, tubos de
ensaio, garrotes, compressas, sondas, caixa de luvas, seringas, agulhas, mangueiras
de oxigênio, soro, remédios. Objetos tristes espalhados por aquele quarto ou
interagindo forçosamente com o corpo de William, na minha frente acamado. Respirei
fundo para segurar as lágrimas. Olhei para as paredes vazias de cor. Nem um
pouco ajudavam. Tomei coragem e direcionei novamente minha mirada para aquele
ser incrível deitado ali em minha frente. Com isso minha mente se permitiu sair
dali, daquele espaço e daquele momento. Viajou para nossa casa, nossa última
casa. Percorreu cada cômodo e de lá saltou para outra e outra casa em que
habitamos nessas tantas décadas compartilhadas. Nossas bagunças, nossas
decorações, nosso tudo misturado. Nossos livros rabiscados de anotações, ora de
um, ora de outro. Compartilhamos leituras e polêmicas, essas coisas que sabem
bem os casais que se especializaram na mesma área do conhecimento. Caminhamos
sempre juntos, desde os dezoito anos quando nos conhecemos na turma da
faculdade. Partilhamos sonhos, bebedeiras, o colchão de solteiro no alojamento
estudantil. Descobrimos juntos o prazer, revivendo-o e revisitando-o de
maneiras diferentes ao longo das décadas. Nos transformávamos nesse contínuo reelaborar
da sexualidade, intercalando tédios, mesmices, mas também renovações. Aprendemos
a ser adultos, a planejar e construir um futuro. Até a difícil tarefa de dividir
os afazeres domésticos e os conflitos de negociar interesses individuais num
projeto coletivo, ainda que só de nós dois. Não tivemos filhos, sequer animais
de estimação. Nunca foi completamente refletido. A maior parte dos tempos, não
era item dos nossos planos. Em alguns momentos não nos esforçamos para evitar, porém
também nunca nos empenhamos em tentar. O tempo se encarregou de dissipar qualquer
possibilidade. Nunca me incomodei de fato, creio que William também não. Talvez
tenhamos ficado muito egoístas para incorporar outro ser em nossas vidas. Não foi
simples conciliar tudo que desejávamos, e queríamos muito. Mestrado, doutorado,
pós-doutorado, núcleos de pesquisas, revistas acadêmicas. Passamos perrengue,
ora um conseguia uma vitória e o outro encarava uma derrota. Inveja, irritação,
até competição inconsciente tiveram que ser contornadas. Nem sempre foi fácil. Por
vezes nossa relação parecia uma montanha russa, com altos e baixos extremos. Em
outras circunstâncias, uma assimetria de desejo e interesse desmotivava e parecia
querer nos dividir, nos assombrando como faz a tantos casais. Mas permanecemos
juntos, sempre contornando, ou até encarando de frente os furacões que se
avizinhavam de nossas vidas. Assim como
nossas bagunças pela casa, já não sabíamos nos dissociar. Tornamo-nos tão um do
outro que, da mesma maneira que os livros misturados na estante, era difícil
saber até que ponto ainda éramos indivíduos. Não me arrependo, mas ... volto
para o quarto do hospital. William me mira com os mesmos olhos de antes,
suaves, doces, mas atentos. Mesmo eu viajando em lembranças, reflexões e
pensamentos, sei que de mim seu olhar não se desligou um só momento. Com eles
meu amor me leu todo o tempo: - E agora, Cecília?
Mariana Penna,
Novembro de 2017.
gostei
ResponderExcluirque bom! obrigada! :)
Excluir