quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Olhar Compaixonante (Parte II)


2008: Se antes sentia no fundo certa frustração por ter nascido no chamado “sexo frágil”, hoje entendia que ser mulher não é ser a imagem que a sociedade cria do que é ser mulher. Percebeu, por experiência, que ser mulher é sim nascer um ser humano e ter que sobreviver a uma imagem lhe foi imposta. Era então ser humano e mulher, por motivos de ordem biológica e por construções sociais. E como ser humano aprendeu a respeitar suas vontades, seus desejos, a não se limitar por muitas das construções sociais de gênero.

E foi vivendo e amando... teve namoros longos, namoros curtos, casos, amigos coloridos... porém nunca mais ficou com desconhecidos. Não era por moralismo, longe disso, era simplesmente falta de tesão. Podia até admirar a beleza física de um estranho e isso se dava com frequência, mas não era motivação suficiente para que se interessasse sexualmente por ele.

Mas se interessar por alguém era algo que acontecia com certa frequência, e cada vez que a euforia passava ela acreditava que estava menos propensa a se apaixonar novamente... ledo engano. Porém, se se apaixonar era algo que lhe ocorria com alguma constância, não era de todo falso que com o passar dos anos tornou-se mais dura, mais fria. Não por meras desilusões amorosas, afinal a vida é muito mais do que desejos de contos de fadas, simplesmente percebeu que viver não é para amadores e que o excesso de sentimentalismo do passado havia embaçado o colorido de seus dias.

No entanto, ainda que lutando para seguir ilesa, alguns tropeços eram inevitáveis. Estava revoltada com o último deles. Pensava nas músicas de desilusão do Paulinho da Viola... sentia-se ridícula. Odiava perceber ainda em si resquícios de desejo de amor de redenção, mas era inevitável e como dito anteriormente, ela aprendeu a conviver com as construções sociais, até as mais desagradáveis, mas que contribuíram para formar o inusitado edifício de sua personalidade.

Mas era sexta-feira, ou melhor: SEXta-feira. Não era um dia para sair do trabalho e ir para casa, além do mais vivendo nessa cidade louca e lasciva chamada Rio de Janeiro, além do mais para uma pessoa tão agraciada de boas amizades como ela. Hora de bar, música ao vivo, papo agradável, risadas, muita descontração. De repente, mirou na mesa ao lado um belíssimo exemplar de ser humano. E conforme o álcool subia à mente, seu superego parecia ir tirar uma soneca. Comentou na roda sobre seu interesse, colocarem pilha era inevitável, além do mais quando um de seus amigos afirmou conhecer o dito cujo e confirmou que ele não era nenhum tosco reacionário. Em pouco tempo, como se adolescentes fossem, já tinham colocado o gato na sua fita. Em menos tempo ainda, os dois já estavam se pegando como se aquele fosse o último dia de existência na Terra. Mais um pouco, e ela já não se dava muito bem conta de como, estavam a transar num motel. E a noite ainda foi longa...


Porém, despertou cedo, tinha um compromisso inadiável. Ele também se levantou. Apesar da situação no mínimo inusitada, não havia ressaca moral. Puderam enfim ter uma conversa propriamente dita. A voz dele era suave, ela achou isso agradável. Em meio aos assuntos que surgiram, emergiam interessantes afinidades, mas não era isso que mais a impressionava. Lembrou-se que no dia anterior havia reparado no olhar perdido daquele garoto, talvez isso a tivesse atraído. Agora, muitas outras coisas daquele olhar combinavam com a suavidade daquela voz. Parecia carregar algum sofrimento, mas as causas eram incognoscíveis. Se carregava o peso do mundo em suas costas ou meramente um pequeno drama pessoal hiperinflado por seu ego, ela não podia saber. Porém, percebia-se sensibilidade, havia ali doçura e aquilo lhe parecia lindo. É, ele parecia lindo. Talvez buscar outra beleza nele fosse um imperativo para que ela não se sentisse fútil por ter se relacionado com alguém tão somente em função da aparência física. Mas não, aquele garoto realmente parecia lindo... E o sorriso...  o sorriso carregava certa timidez, um quê de ingenuidade. Combinado àquele olhar deliciosamente enigmático, eis que novamente ela identificou: ternura, compaixão. E percebeu, naquele momento, aquela compaixão que tanto lhe atraía nas divindades femininas desde a budista Kuan Yin até a Maria dos cristãos. Parecia algo extremamente belo, algo verdadeiramente apaixonante. E ao invés de se sentir desconfortável, ela inevitavelmente respondeu àquilo com um discreto sorriso... pois era como se a suavidade e leveza daquele olhar pudessem purgar a paixão de todo o seu mal, de todos seus extremos indesejáveis. Assim, mesmo sem qualquer certeza a respeito do que o futuro lhe reservava, uma coisa concluiu como certa: dessa vez, ela não iria se levantar da fogueira.

Mariana Penna

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